Quem inventou o avião? Enquanto o resto do mundo responde à pergunta citando os Irmãos Wright, nove em cada dez brasileiros provavelmente diriam, sem titubear, que foi Santos Dumont, emendando em seguida argumentos apaixonados para defender o mineiro de ter seu pioneirismo usurpado.
Com a mesma insistência, os descendentes da colônia em Nova Friburgo (RJ) afirmam que a imigração alemã, reconhecida oficialmente pelo Brasil como tendo começado em julho de 1824 com a fundação da cidade de São Leopoldo (RS) e cujo bicentenário é comemorado no próximo dia 25, na verdade teve início dois meses antes, em maio do mesmo ano, com a chegada de alemães à cidade na região serrana do estado do Rio de Janeiro.
“A gente não quer brigar com São Leopoldo”, diz Pedro Erthal Sanglard, procurador de Justiça do Ministério Público e autor do livro “As Famílias Erthal-Gradwohl e Nova Friburgo: A Verdadeira Primeira Colônia Alemã do Brasil”. “O que a gente quer é corrigir um erro histórico, quer que Friburgo seja reconhecida como primeira a colônia oficial do Brasil independente.”
Sanglard, de família suíço-alemã, escreve na obra que dois veleiros vindos do norte do que seria a Alemanha (o país só foi unificado em 1871), o Argus e o Caroline, chegaram ao Rio de Janeiro entre janeiro e abril de 1824 com cerca de 300 colonos e 200 mercenários que serviriam no recém-formado Exército imperial —o principal interesse de dom Pedro 1º à época era em soldados, o que levou o governo brasileiro a financiar a viagem.
Os civis, por sua vez, seguiram em sua maioria para a região serrana com a intenção de fundar uma colônia agrícola no local e se juntar aos suíços que já estavam assentados por ali, chegando a Nova Friburgo em 3 de maio de 1824.
O experimento, entretanto, não foi bem-sucedido: a região era montanhosa e o solo, pedregoso, inviabilizando o cultivo —a situação era tão grave que os colonos encontraram casas erguidas pelos suíços abandonadas. Isso levou muitos alemães a se dispersarem em direção a fazendas de café em Minas Gerais e no município de Cantagalo, no Rio.
“É uma pena que a vasta literatura sobre a imigração alemã no Brasil, como foi produzida quase toda na região Sul, ou ignora Friburgo, ou a descarta porque não deu certo.”
A seu favor, a tese friburguense conta com o fato que a cidade abriga a igreja luterana mais antiga da América Latina, fundada há 200 anos pelos imigrantes alemães. “Não faria sentido algum ter a igreja luterana em Friburgo se não houvesse luteranos. Isso é indiscutível”, insiste Sanglard.
Entretanto, a reivindicação de Nova Friburgo tem problemas. O mais grave é o fato de que a colônia já existia quando os alemães chegaram lá: os suíços, todos católicos, foram convidados a povoar a região pelo rei português dom João 6º antes da independência do Brasil. É por isso que a cidade marca sua fundação como sendo em 1818, data do decreto real que autorizou a fundação da colônia.
Outro argumento a favor de São Leopoldo é que, no Sul, a colônia foi bem-sucedida, o que não pode ser dito de Nova Friburgo. O historiador Ademar Felipe Fey afirmou em entrevista à DW sobre o veleiro Argus que se convencionou marcar a imigração alemã com a fundação de São Leopoldo porque colônias anteriores, como a de Nova Friburgo e empreendimentos privados na Bahia, “não atenderam às expectativas do Império”.
Por fim, a natureza política da região onde hoje atualmente é a Alemanha, no início do século 19 e décadas antes de ser unificada pela Prússia, dificulta a distinção entre suíços e alemães —a identidade nacional que os separaria não estava tão bem formada na época, tratando-se, para todos os efeitos, de pessoas de língua alemã de partes diferentes da Europa. Sem essa distinção, a fundação da colônia em Nova Friburgo seria indiscutivelmente em 1818, antes da independência.
Sanglard, entretanto, aponta a religião dos imigrantes como fator decisivo de distinção, relembrando que os suíços podiam praticar sua religião livremente enquanto os alemães precisavam fazê-lo com uma série de restrições.
Fato é que São Leopoldo foi reconhecido como berço da colonização alemã no Brasil por uma lei federal promulgada em março de 2011 pela presidente Dilma Rousseff (PT). O que não impediu Nova Friburgo de comemorar o bicentenário da imigração este ano —com eventos que começaram, é claro, no dia 3 de maio.