Pelas águas tortuosas do rio dos Sinos, após atravessar o Atlântico em um navio veleiro, imigrantes alemães chegaram a São Leopoldo (RS), em 1824, a bordo de lanchões. Formaram a primeira colônia germânica do império brasileiro independente —projetos anteriores eram privados ou ligados à Coroa portuguesa.
Dois séculos depois, o mesmo rio transbordou na maior enchente já registrada na história gaúcha. Com 1,20 metro de altura na parede, a água tomou conta do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, próximo do marco inicial da cidade, também inundado. O acervo da instituição agora passa por restauração com ajuda da comunidade.
Alguns anos depois da instalação dos colonos, José Feliciano Fernandes Pinheiro (1774-1847), o próprio visconde de São Leopoldo, registrou uma crítica ao lugar escolhido para distribuir as terras. “Tomando o rio algumas águas das chuvas, e a metade da povoação já estava debaixo d’água”, escreveu em 1831.
A passagem consta no livro “1824: Como os alemães vieram parar no Brasil, criaram as primeiras colônias, participaram do surgimento da Igreja protestante e de um plano para assassinar dom Pedro 1º”, do historiador gaúcho Rodrigo Trespach.
Fechado desde a enchente de maio, o museu reabrirá na próxima quinta (25), data que marca os 200 anos da imigração alemã no país. O espaço, que leva o nome daquele que também foi presidente da província do Rio Grande do Sul, possui mais de 10 mil objetos e 12 mil fotos. Comunitária, a instituição lançou uma campanha de adoção de itens que agora precisam de reparo. É o caso de um piano alemão Schiedmayer, de 120 anos, cujo custo de restauração é estimado em R$ 150 mil.
Uma das raridades do acervo escapou da inundação de forma tão misteriosa quanto a fé que representa: uma pesada Bíblia luterana, de 44 cm de altura e 35 cm de largura, com capa de couro e publicada em 1765. Escrito com letras góticas em alemão antigo, da tradução de Lutero a partir do grego, o livro pertenceu provavelmente a um pastor vindo da Alemanha. A Bíblia, que ficava exposta no andar térreo, escapou por pouco d’água.
“As chuvas já estavam intensas, e o museu estava fechado. Uma funcionária veio checar a situação interna. Não tinha entrado água ainda. Mas, mesmo assim, ela intuiu carregar a Bíblia para o andar de cima”, conta Ingrid Marxen, diretora de relações institucionais do museu.
As Bíblias tinham papel importante no cotidiano dos imigrantes, a maioria deles luteranos. Os pastores realizavam cultos —com registro de nascimentos e falecimentos— até mesmo durante o percurso no Atlântico, segundo o pastor Osmar Luiz Witt, coordenador do Arquivo Histórico da IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil). Esta, aliás, é presidida por uma pastora, a gaúcha Sílvia Beatrice Genz.
Em terra firme, inicialmente os cultos eram domésticos por uma questão legal.
“A Constituição de 1824, a primeira do país, previa que a Igreja Católica Romana era a religião do Estado brasileiro. As outras religiões seriam toleradas, mas não poderiam se reunir em lugares que identificassem a existência de uma igreja. Então, poderiam se reunir nas casas ou em prédios que servissem de escola, por exemplo. Não deveria ter torre nem sino”, afirma Witt. Além disso, casamentos celebrados por pastores só foram reconhecidos a partir de 1861, e a comunidade precisou construir seus cemitérios.
Diferentemente da Bíblia, a cópia do livro com os registros de entrada dos alemães no Rio Grande do Sul de 1824 a 1853 foi atingida. O original, escrito à mão pelo médico Daniel Hillebrand, entretanto, estava protegido. Hillebrand foi o diretor-geral das colônias no Rio Grande do Sul e um dos diretores da colônia de São Leopoldo.
Mesmo antes da catástrofe climática, o artefato era raramente manuseado para evitar seu desgaste. Uma cópia é disponibilizada para quem deseja procurar o registro de seus antepassados. Esta repórter, da sétima geração de imigrantes, acessou o documento original. Ali, encontrou o registro do seu antepassado, Johann Ludwig Sperb (1790-1861), um lenhador luterano.
Ludwig Sperb chegou a São Leopoldo em 1826, na sequência dos pioneiros de 1824, no mesmo projeto de imigração e colonização. Veio acompanhado de sua mulher e três filhos. A família deixou a região do rio Reno —na época o grão-ducado Hessen-Darmstadt— e viajou a bordo do navio veleiro Der Kranich (nome em alemão para a ave grou).
Esta foi a segunda viagem do navio com colonos para São Leopoldo. Na primeira, chegaram os antepassados do historiador Trespach. O marceneiro Friedrich Dressbach —a grafia original do sobrenome era diferente— chegou a São Leopoldo em 1825 com a segunda esposa e cinco de sete filhos.
Os inventários localizados pelo escritor gaúcho na Alemanha indicam que Friedrich deixou pouco para trás: vendeu lotes de um hectare de terra para poder custear as passagens do navio. Entre os bens que ele manteve estavam uma casaca azul, uma roupa de trabalho, um par de calças, chapéu, cachecol, um par de sapatos, dois pares de meias e duas camisas.
“Tratava-se de uma população vulnerável que recebeu uma oferta irrecusável”, diz Trespach sobre o povo empobrecido após as guerras napoleônicas e a Revolução Industrial. Foi nesse contexto que surgiram as propagandas do governo brasileiro, resultadas de um projeto do imperador dom Pedro 1º (1798-1834).
Os colonos receberiam 77 hectares de terras —o que não se cumpriu em todos os casos—, ferramentas de trabalho, sementes e animais. Uma figura colaborava para atrair os alemães ao Brasil, a austríaca imperatriz Leopoldina (1797-1826). O nome da colônia de São Leopoldo foi dado em sua homenagem.
Falante do alemão, Leopoldina era uma mulher considerada ilustrada e filha do imperador Francisco 1º da Áustria.
Vale lembrar que a Alemanha como se conhece hoje não existia. Tem-se a referência aos imigrantes como alemães, mas eles pertenciam a uma série de territórios em disputa e regiões com fronteiras em constante mutação. Em comum, tinham a língua alemã. A formação do Estado, porém, é bem posterior à vinda dos colonos, com o Império Alemão, em 1871.
Ao chegarem, os imigrantes permaneciam por um breve período em uma casa de passagem —atualmente o museu Casa do Imigrante— e depois eram deslocados para seus lotes. Porém, não havia estrutura.
“Largaram nossas coisas e caixas no chão; estávamos na nossa propriedade, mas o nosso teto era o céu azul, e os animais da floresta eram nossos únicos vizinhos”, escreveu um imigrante. A carta consta no livro de Trespach.
De 1824 a 1830, cerca de 5.000 alemães se instalaram no Rio Grande do Sul, naquela que é conhecida como a “primeira grande imigração”, segundo Rodrigo Luis dos Santos, historiador do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo.
“A imigração seria praticamente interrompida de 1830 a 1846 porque o governo imperial para de investir, para de pagar a viagem e doar terras. A partir de 1846, há um recomeço, mas as províncias tinham seus projetos, independentes, com dinheiro próprio ou até mesmo de iniciativas particulares”, afirma Santos.
“Destaco a coragem destas pessoas que viajaram rumo ao desconhecido. Eles queriam a nacionalidade brasileira, mas mantendo sua tradição e cultura. Assim surge a figura do teuto-brasileiro, que é brasileiro, mas cultiva sua memória.”