“Uma tempestade está se formando em Israel e na Palestina, exigindo uma resposta urgente do país que mais permitiu o surgimento de um único Estado que defende a supremacia judaica”, alertou em abril o professor de relações internacionais e ciência política Michael Barnett, da Universidade George Washington, na prestigiosa revista Foreign Affairs.
O artigo cobrava dos Estados Unidos uma mudança de posicionamento em relação a Tel Aviv. Para Barnett e seus coautores, a potência, como a maior fiadora de Israel, precisa reconhecer que a solução de dois Estados é uma ficção, enquanto a realidade é a de um único Estado estruturado em moldes muito semelhantes aos de um apartheid.
“Em vez de isentar Israel da forte norma contra o apartheid, consagrada no direito internacional, Washington deve confrontar a realidade que ajudou a criar e começar a enxergá-la, falar sobre ela e lidar com ela de forma honesta”, escreveu no texto, em parceria com Nathan Brown, Marc Lynch e Shibley Telhami.
“Nós tivemos um pouco de reação negativa”, reconhece Barnett em entrevista à Folha –uma réplica ao texto acusa os autores de quererem destruir Israel. Passados seis meses, após mais uma explosão de violência na região, com vítimas israelenses e palestinas, o acadêmico diz não ter nenhuma satisfação em falar: “eu avisei”.
“Para aqueles de nós que têm acompanhado isso por anos, décadas, há uma espécie de exaustão trágica”, afirma ele, ao apontar as atrocidades cometidas pelo grupo terrorista Hamas contra israelenses e a perspectiva de uma sobrevivência ainda mais difícil para palestinos daqui em diante.
Barnett é autor dos livros “Uma História da Política Externa de Judeus Americanos” e “Confrontando os Custos da Guerra: Poder Militar, Estado e Sociedade no Egito e em Israel”, entre outros. Ele já lecionou na Universidade Hebraica de Jerusalém e na Universidade de Tel Aviv.
Inicialmente, o presidente Joe Biden adotou uma postura bastante dura nos discursos, que contrasta com seus modos habituais, repetindo que os EUA vão apoiar o aliado e assegurando “o direito e o dever” de o país se defender. Os americanos já enviaram seu maior porta-aviões à região, o USS Gerald Ford, e devem ampliar a ajuda militar a Tel Aviv assim que a Câmara conseguir eleger um novo líder.
Em entrevista neste domingo (15) ao programa “60 Minutes”, da rede de TV CBS, Biden modulou um pouco mais o tom. Afirmou que uma eventual ocupação da Faixa de Gaza por Israel seria “um grande erro”. Disse ainda que “é preciso haver um caminho para um Estado palestino”.
A convergência nacional na defesa do aliado no Oriente Médio diverge do tratamento que vem sendo dado à Ucrânia. O envio de mais recursos ao país, em guerra com a Rússia, enfrenta resistência crescente no Congresso –apesar de a contenção de Vladimir Putin ser uma prioridade para a estratégia de segurança nacional americana.
O último pedido feito pela Casa Branca está travado, mesmo após um lobby feito pessoalmente pelo próprio Volodimir Zelenski durante visita a Washington no mês passado.
A diferença ilustra o lugar especial que Israel ocupa na política externa dos EUA —”é uma das poucas coisas em que democratas e republicanos ainda conseguem concordar. Israel está acima da política partidária”, diz Barnett, que vê a crise como potencialmente positiva para a imagem de Biden, a um ano das eleições.
O professor afirma que o laço entre os países é tão forte porque extrapola interesses militares e geopolíticos. Os Estados Unidos foram a primeira nação a reconhecer o Estado de Israel, em 1948, e a primeira a tomar a decisão –criticada internacionalmente– de reconhecer Jerusalém como sua capital, em 2017, durante o governo Donald Trump.
“Israel é um grande parceiro dos Estados Unidos, e Israel não tem um amigo melhor que os Estados Unidos”, diz o Departamento de Estado americano sobre o aliado. Nesta semana, um porta-voz da pasta travou um debate acalorado com um jornalista ao ser pressionado a comentar as mortes de civis palestinos por forças israelenses. No limite, ele culpou o Hamas.
“Os terroristas que lançaram esses ataques, sabendo que eles levariam não apenas à perda de vidas israelenses, mas também de civis palestinos: são eles que carregam em última instância a responsabilidade por esses atos”, disse Mathew Miller.
“O apoio dos EUA é incondicional, mas não deveria ser”, resume Barnett. “Não é uma questão de lobby. É algo muito enraizado na sociedade americana como um valor. É cultural.”
Em termos concretos, essa aliança se manifestou ao longo das décadas de diversas formas que, na visão do especialista, confluíram para uma realidade insustentável de um um Estado atual.
“A construção de assentamentos israelenses na Cisjordânia não teria sobrevivido e acelerado, e a ocupação não teria perdurado, sem os esforços dos EUA para proteger Israel das repercussões nas Nações Unidas e em outras organizações internacionais”, aponta no artigo de abril. Ele elenca ainda o apoio tecnológico e militar, e os esforços diplomáticos na promoção dos acordos de Camp David e Abrãao, que normalizaram as relações de Israel com países árabes.
Ao mesmo tempo, as violações perpetradas por Israel contra palestinos não são ignoradas pelos Estados Unidos. Em um relatório anual sobre direitos humanos pelo mundo, o país afirma que há “relatos críveis” de “assassinatos ilegais ou arbitrários e detenção arbitrária ou injusta, incluindo a de palestinos em Israel e nos territórios ocupados”.
O documento, publicado em março deste ano, cita ainda “restrições a palestinos residentes em Jerusalém”, “violência contra solicitantes de asilo e migrantes” e “violência ou ameaças de violência contra palestinos e membros de grupos étnicos ou minorias nacionais ou raciais”.
Esses temas, no entanto, não são refletidos na política externa americana em relação ao país. “Esses relatórios, quando se trata de Israel, são ‘higienizados’. Eles tendem a minimizar muito do que está acontecendo”, afirma Barnett.
Ainda assim, o professor acredita que existe uma preocupação de Washington com a morte de civis palestinos. “Israelenses sabem, assim como os americanos, que embora exista apoio a Israel agora, quando as câmeras se voltarem para Gaza e você começar a ver prédios destruídos, vidas destruídas, esse apoio vai desaparecer muito rapidamente”, alerta.
Agora, ele acredita que os Estados Unidos vão recalcular sua estratégia para o Oriente Médio. A potencial normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita, pela qual a diplomacia americana vinha trabalhando, deve ser abandonada.
As sanções contra o Irã, por sua vez, devem ser ampliadas –foi barrado o acesso do país persa a um fundo de US$ 6 bilhões que havia sido liberado pelos americanos para fins humanitários, segundo o Washington Post.
Sobre um envolvimento direto americano no conflito –algo que a diplomacia até o momento vem descartando–, o professor também acredita ser pouco provável, porque não é do interesse nem mesmo dos israelenses. O gatilho, no entanto, seria disparado caso ocorra um ataque da Síria ou do Irã.
“O USS Ford está lá para dizer: estamos aqui. Não mexa conosco. Esse ao menos é o sinal que foi dado, e depois que você envia o sinal, você tem que seguir em frente com ele.”