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Sobre finitudes, soltar e a vida secreta dos cavalos doidos – 14/07/2024 – Normalitas

Acabo de ficar sabendo, pela própria Folha, que a atriz americana Shannen Doherty, a Brenda da série ‘Barrados no Baile’, morreu neste sábado (13), aos 53 anos.

Soltei um ‘nããão’ alto e sonoro, que fez meu companheiro espiar pela janela da sala e me perguntar se eu tava bem.

– Não – consegui dizer – … a Brenda morreu!!

Não é por saudosismo dos anos noventa. Nem porque eu siga com muito afinco a vida de celebridades.

É porque, como ela, eu também tive um câncer de mama. Eu também fiquei apavorada, eu também celebrei a vida, eu também acreditei.

Mas, ao contrário da Shannen – eu ainda estou aqui.

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O que define as chances de sobrevivência de um paciente de câncer?

Como diz meu pai, “n mais kappa fatores”, que não entram no mérito dessa coluna. Entre concretos e fluidos, comprovados e hipotéticos, em-estudo, mensuráveis, extrapoláveis, anedóticos.

Shannen foi diagnosticada com câncer de mama em 2015, aos 44 anos.

A partir daí, decidiu compartilhar abertamente sua jornada. “É mais fácil viver com câncer se eu sei que estou ajudando pelo menos uma pessoa”, disse, em uma entrevista da época ao programa televisivo Entertainment Tonight.

Fiquei sabendo de sua história mais tarde, quando eu mesma recebi o diagnóstico, no final de 2017.

Desde então, às vezes eu ia no google pra ver o que estava acontecendo com ela; às vezes eu não queria nem ver. Eu mesma estava vivendo uma grande transformação e aprendendo a navegar um mundo de incertezas. Aprendendo a agir em meio a pavores noturnos, a ser forte e sensível ao mesmo tempo, a pedir ajuda, a respeitar meus limites, a entender meus medos, a cultivar mais leveza, a me olhar no espelho, careca e emaciada, com mais doçura.

Quando Doherty revelou, em 2020, que o câncer tinha voltado em estágio avançado (“estou petrificada, estou muito assustada”, disse na época, em entrevista ao programa “Good Morning América”), eu, que estava em remissão (livre da doença) desde 2018, fiz minhas contas.

Quem é paciente sabe do que tô falando.

“Então eu tenho uns 5 anos pela frente”, pensei, num átimo de segundo.

Depois des-pensei. Tal é a vida, tal é o cavalo doido do pensamento. Eu medito cada dia pra isso: não pra deixar de pensar, mas aprender a não seguir todas as minhas cavalgadas internas. Que las hay, las ha

Finalmente, em 2023, Shannen anunciou que a metástase tinha chegado ao cérebro. De novo fiz as contas, de novo as desfiz.

Também pratiquei essas matemáticas bestas com outros casos, próximos ou célebres. A cabeça tenta escanear todas as informações disponíveis do ambiente em prol da sobrevivência.

Sim, gente famosa também é de carne e osso. Também sofre, também morre. Sim, a grana sem dúvida ajuda. Sim, a falta de acesso a um diagnóstico rápido e de qualidade no sistema público de saúde afeta principalmente as populações mais vulneráveis, e isso é uma merda enorme.

E, sim, acima de tudo, o futuro ninguém sabe – ainda que a morte chegue pra todos.

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De todas as, hmm, contribuições que o câncer trouxe e traz à minha vida, sem dúvida uma das mais valiosas foi aprender a soltar.

Mais do que um aprendizado concluído com diploma na parede, é um exercício constante. Não só com pensamentos intrusivos relacionados à doença, mas também com mágoas, medos, culpas, limitações, fissuras, expectativas e frustrações. Comigo, com os outros, com a pemba do trânsito, as coisas como são.

Soltar abre espaço, abre caminhos. Dentro e fora. Pode ser em tom de brincadeira, pode ser imperfeito: o soltar-possível. Soltar é também perdoar que nem todo dia a gente está bem, nem todo dia a gente é legal, nem todo dia é de brisa e, por sinal, nem todo dia a gente consegue soltar; mas seguimos aqui, caminhando.

Acabei de falar tudo isso pra mim mesma enquanto xingava treze gerações dos faraós depois de queimar o almoço de domingo.

E enquanto escrevia essa coluna, angustiada por conta da dificuldade cognitiva que me bagunça o raciocínio desde o tratamento oncológico (e agravada agora com a perimenopausa) e que me faz ler e reler e escrever e reescrever 408538 vezes cada linha, temerosa de estar perdendo o juízo.

E também quando, ao saber da morte da Shannen, senti um misto de empatia e medo primitivo aflorando em meu espírito.

A Shannen se foi, nós seguimos. Com a comida queimada, as lágrimas tênues e a imperfeição dos dias, nossas pequenas e grandes cavalgadas. Que sejam leves, e que leve seja o nosso coração.

Fonte: Folha de São Paulo

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