Numa noite desenhada para assegurar ao Partido Democrata de que está no pleno exercício de suas faculdades mentais para concorrer à reeleição, Joe Biden entregou de bandeja aos opositores de sua postulação duas gafes.
Chamou Volodimir Zelenski de Vladimir Putin na frente do presidente ucraniano, e depois em uma entrevista coletiva trocou como sua vice Kamala Harris pelo arquirrival Donald Trump. Some-se isso a momentos titubeantes e ao fato de que teve de falar sobre sua saúde neurológica e um saldo negativo está dado.
Isso posto, em ao menos um item Biden teve, na entrevista, a oportunidade de demonstrar clareza e profundidade analítica em um dos campos mais vitais de sua descrição de tarefas: a política externa.
No campo em que melhor se movimenta, o presidente deu aquilo que seria a notícia principal da entrevista não fosse a apreensão acerca de sua cognição: a possibilidade de elevar o preço que a China irá pagar por apoiar a Rússia, direta ou indiretamente, na Guerra da Ucrânia.
A dica havia sido dada já no documento final da cúpula da Otan, que recebera Zelenski em Washington. A aliança militar repetiu o ditado americano e afirmou que Pequim está auxiliando Putin em sua agressão contra os ucranianos, não só com laços econômicos, mas também insumos para armamentos.
Biden já fizera tal acusação, refutada na Rússia e na China, mas na entrevista ele sugeriu que está pronto para se intrometer ainda mais na relação entre os aliados rivais na Guerra Fria 2.0. “Nós temos de assegurar que Xi [Jinping, o líder chinês] entenda que há um preço a pagar”, afirmou.
A 20 dias da invasão da Ucrânia, Putin encontrou-se com Xi para celebrar a aliança entre países que quase foram à guerra nuclear em 1969. De lá para cá, os chineses se entupiram de petróleo russo e ensaiam comprar mais gás, produto russo para o qual a Europa fechou a carteira.
Resultado, os países tiveram o maior comércio bilateral da história no ano passado. Isso agora está sendo afetado porque os EUA passaram a mirar negociações secundárias de bancos chineses, principalmente em Hong Kong, dificultando transações com os russos.
O temor já fez o fluxo comercial entre Pequim e Moscou desacelerar em 2024. Por óbvio, Biden não tem como fechar as portas para a China, uma de suas maiores parceiras, mas pode dificultar as coisas.
Biden também tinha o que dizer sobre a Otan, aliança que havia sido deixada à míngua sob Trump (2017-2021). Defendeu sua inovadora política de abrir dados de inteligência que alertavam para a invasão iminente de Putin, vistos no fim de 2021 como um instrumento de pressão mais do que realidade.
De forma correta, disse que a Otan renovou-se. Afirmou que defender a Ucrânia é vital, mas apresentou seu argumento para não permitir ataques com armas americanas a qualquer ponto da Rússia: o risco desnecessário de uma escalada.
Tudo isso pode ser questionável no mérito, mas integra um quadro coerente. “Todo americano ou americana precisa se perguntar: o mundo é mais seguro com a Otan?”, questionou de forma retórica, dizendo fazer parte de uma cadeia presidencial que começa com o democrata Harry Truman (1945-53) e passa pelo republicano Ronald Reagan (1981-1989).
Menos feliz foi ao falar de Israel, de todo modo um tópico lateral em comparação com a pressão sobre o suporte de Washington à guerra de Binyamin Netanyahu contra os terroristas do Hamas em Gaza de meses atrás. Disse que o Estado judeu “ocasionalmente foi menos que cooperativo” nas discussões sobre o conflito.
Também contou meias verdades ao citar a retirada do Afeganistão, que foi arquitetada no governo Trump, mas levada a cabo de forma atabalhoada por Biden em 2021. Disse que sempre fora contrário à ocupação do país sul-asiático, o que não condiz com sua ação como vice de Barack Obama (2009-2017).
Mais importante, embananou-se pouco ao falar sobre tudo isso, embora não tenha sido suficiente para retirar as dúvidas acerca de sua viabilidade eleitoral.