O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aterrissou na noite desta segunda-feira (8) em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. A viagem oficial busca fortalecer o governo de Luis Arce, alvo de uma tentativa de golpe há duas semanas.
Ao mesmo tempo, segundo seus aliados, o petista adotará cautela para não se indispor com seu antigo aliado Evo Morales —desafeto do atual presidente boliviano.
Lula até citou o ex-líder cocaleiro ao falar com jornalistas após a chegada à cidade boliviana. Mas usou um tom cuidadoso na menção, evitando entrar em maiores detalhes.
“Amanhã, vou me inteirar da situação política na Bolívia, como está a divergência entre Evo [e Arce], quem são os candidatos de oposição. Naquilo que a gente puder ajudar para construir uma unidade e fortalecer a democracia, acho que esse é o papel do Brasil”, disse.
O cuidado especial tem como objetivo não aprofundar as divergências locais dentro do partido MAS (Movimento ao Socialismo), que vive um racha que coloca em lados opostos Arce e seu antigo padrinho político, Evo.
De acordo com o Itamaraty, não há previsão de encontro entre Lula e Evo.
A avaliação do governo brasileiro é de que o acirramento da crise dentro do partido pode abrir caminho para o fortalecimento de um candidato de ultradireita nas eleições do ano que vem, aumentando o poder desse campo na América Latina.
Essa hipótese é preocupante para Lula, que passou as últimas semanas às turras com o presidente da Argentina, o ultraliberal Javier Milei.
O petista aproveitou a chegada à Bolívia para condenar a tentativa de golpe no país, que chamou de imperdoável. Seus interlocutores afirmam que o objetivo principal da viagem é transmitir uma mensagem em defesa da democracia lá e em toda a América Latina, reforçando a pressão internacional contra arroubos golpistas e em favor da legitimidade do governo Arce.
A avaliação é de que um dos principais fatores que ajudaram a desmobilizar eventuais militares indecisos, durante a tentativa de golpe, foi a pronta condenação dos líderes na região.
“É inimaginável você pensar, no primeiro quarto do século 21, que vai resolver o problema dando o golpe, que os militares podem ser a solução”, disse Lula nesta segunda. “Não existe milagre. O que existe é respeito à democracia, que é o sistema que pode permitir a alternância de poder. O povo elege um hoje, amanhã não gosta, não o elege, elege outro e assim vai”, completou.
A viagem a Santa Cruz de La Sierra estava marcada há alguns meses, mas ganhou novo significado quando o general Juan José Zúñiga e seus comandados tomaram a praça em La Paz onde fica o palácio presidencial e tentaram destituir Arce do cargo. O movimento foi controlado. Zúñiga acabou preso e acusou o presidente boliviano de tentar um autogolpe.
A versão também foi endossada por Evo, que é correligionário de Arce. Ambos vêm travando uma disputa política dentro do MAS e em todo o país. Evo declarou que o objetivo da ação da quartelada seria melhorar a imagem do atual chefe do Executivo. O líder indígena deseja concorrer a um quarto mandato nas eleições presidenciais de 2025, embora esteja impedido pela mais alta corte do país.
Lula vem sendo aconselhado a tomar cuidado com essa crise dentro do MAS. Há pedidos para que ele faça uma espécie de mediação, mas ele tentará manter um caráter inteiramente institucional na visita, embora planeje manifestar a Arce a preocupação de seu governo em relação à disputa com Evo. A tentativa de mediação caberia, assim, a integrantes do PT, considerando a proximidade do partido com o MAS.
Ao mesmo tempo, Lula não deve fazer nenhum gesto em direção a Evo —com quem compartilhou um período de domínio da esquerda na América do Sul— durante a sua visita, evitando que ela seja vista como uma tentativa de interferência na política doméstica boliviana.
Especialistas apontam que a crise que levou à tentativa de golpe é resultado de um conjunto de fatores de ordem econômica, geográfica e política.
A Bolívia vem enfrentando na última década instabilidade, por causa da queda na arrecadação com a venda de gás natural e outras atividades ligadas à mineração. Esse fator elevou a pressão sobre as contas públicas e atingiu a população, levando à falta de insumos e à elevação do custo da importação de alimentos.
Antônio Jorge Ramalho, professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília), aponta ainda a tensão existente entre as cidades de La Paz e Santa Cruz de La Sierra, que ele descreve como “dois centros econômicos com lógicas de inserção internacional concorrente e elites políticas nada sinérgicas”.
Essa divisão geográfica também tem relação com a disputa dentro do MAS, com o atual presidente mais ligado a La Paz, e Evo, a Santa Cruz de La Sierra.
O pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV Leonardo Paz diz que um elemento coincidente em dois momentos recentes de alta instabilidade política —neste ano e em 2019— é a iniciativa de Evo de tentar se eleger novamente presidente da Bolívia.
“O elemento central da política boliviana hoje na realidade é o que fazer com o Evo Morales”, afirma o professor.
Ele lembra que Evo é uma personalidade carismática, que chegou ao poder tentando socializar uma série de bens públicos, em particular os recursos naturais. E conseguiu reverter recursos em programas sociais e culturais. Por isso, mesmo fora do comando do país, conta com um “dividendo de popularidade”.
Por outro lado, prossegue o pesquisador, mantém uma vontade irrestrita de manutenção do poder e, assim, acaba consumindo o oxigênio em seu entorno, impedindo o crescimento de novas figuras políticas em seu campo.
Além de aspectos políticos, Lula pretende usar essa viagem para lançar novas bases de reaproximação econômica com a Bolívia, após um vácuo no governo Jair Bolsonaro (PL). O país vizinho foi incorporado como membro do Mercosul nesta sexta-feira (5).
O brasileiro participa de um encontro com empresários dos dois países. Também se encontrará com movimentos sociais.
Além disso, acompanham Lula na viagem os ministros Alexandre Silveira (Minas e Energia) e Simone Tebet (Planejamento). O primeiro deve tratar de parcerias para impulsionar e renovar a produção de gás boliviano, que vem sendo afetada pela falta de investimentos e de divisas internacionais.
Tebet, por sua vez, é responsável por uma iniciativa de integração da infraestrutura regional, e deve apresentar formas de tirar do papel projetos de corredores rodoviários e hidroviários entre as duas nações.