A acolhida inicial dos refugiados da Guerra da Ucrânia na Europa foi notável. Milhares de pessoas se organizaram para comprar e distribuir itens essenciais e montar centros de recepção e de informação, e não faltou quem tenha oferecido um cômodo da casa ou o próprio sofá como lar temporário.
Isso sem falar na ajuda oficial da União Europeia, que menos de um mês após o início da invasão russa concedeu aos ucranianos uma proteção temporária que permitiu que eles tivessem acesso a uma série de privilégios a que só os cidadãos do bloco têm direito —ação esta que fez muitos chamarem a atenção para a discrepância do tratamento dado pelos europeus aos ucranianos e aos refugiados vindos de outras partes do globo.
Mais de dois anos depois do início do conflito, no entanto, muitos dos refugiados ucranianos no continente enfrentam desafios como a baixa qualidade de acomodações emergenciais e a sensação de que seus dramas caíram no esquecimento. Pelo menos é disso que se queixam pessoas em dois dos maiores centros montados para receber os refugiados ucranianos na Europa: o Centro de Recepção de Tegel, em Berlim, e o Centro para Refugiados Ucranianos de Modlinska, em Varsóvia.
O Tegel, em especial —um aeroporto internacional desativado transformado em abrigo temporário duas semanas após o início da guerra—, tem sido palco de uma série de escândalos nos últimos meses. Em setembro passado, mais de cem mulheres ucranianas assinaram uma carta afirmando serem alvos recorrentes de assédio sexual por parte dos agentes de segurança do centro. Mais denúncias, estas de curdas requerentes de asilos, terminaram com a demissão de 55 integrantes da equipe em dezembro.
Em março deste ano, um incêndio destruiu uma das tendas que serviam de dormitório para cerca de 300 refugiados ucranianos. Não houve mortos nem feridos, mas o episódio chamou a atenção da imprensa local para as condições precárias enfrentadas pelos cerca de 4.500 moradores do aeroporto, dos quais aproximadamente 1.000 são requerentes de asilo vindos de outros países que não a Ucrânia.
O centro foi idealizado como um lugar onde os refugiados ucranianos dormiriam por alguns dias antes de serem encaminhados para habitações permanentes. Mas muitos deles acabam esperando uma casa por meses, às vezes mais de um ano, disse Karin Rietz, a porta-voz do órgão do governo responsável pela administração do aeroporto.
A Folha visitou o Tegel em dezembro passado. Apesar das decorações de Natal nas paredes e do torneio de sinuca que acontecia em uma das áreas de recreação, a sensação era de desolamento. Divisórias de PVC como as usadas em baias de escritórios delimitavam os quartos nas áreas dos antigos terminais. Nas tendas montadas no exterior da construção para servir de dormitórios, a privacidade é ainda menor, e até 16 pessoas dividem um único quarto. Não há separação por gênero.
Um ucraniano de 29 anos que não quis revelar o nome disse achar que a falta de privacidade incomoda principalmente as mulheres —que são maioria entre os refugiados ucranianos, uma vez que homens de 18 a 60 anos estão a princípio proibidos de deixar o país para ficar à disposição das Forças Armadas.
Há uma pressão crescente por parte de políticos e da sociedade civil para que o centro de refugiados do Tegel seja desativado. O espaço, no entanto, será mantido ao menos até dezembro de 2025 e será ampliado para receber mais mil acolhidos.
Os planos refletem o fluxo cada vez maior de ucranianos para a Alemanha. O país recentemente ultrapassou a Polônia e se tornou o membro da União Europeia com o maior número de refugiados ucranianos, segundo mostram dados do Acnur, a agência da ONU responsável pelo tema.
Um estudo encomendado pelo governo polonês e divulgado em setembro passado indicava que alguns dos fatores por trás desse movimento eram o incentivo do governo alemão à absorção de mão de obra estrangeira e os salários maiores em relação aos oferecidos na Polônia.
Já a nação com a maior quantidade global de refugiados ucranianos é a Rússia. Embora o país de Vladimir Putin seja, na prática, o que motivou os deslocamentos ao invadir a Ucrânia, o fluxo para seu território era em alguma medida esperado, dada a proximidade territorial e cultural dos dois países vizinhos. Matthew Saltmarsh, diretor da área de comunicação do Acnur, alerta, porém, que a entidade tem uma atuação bastante limitada na Rússia, e que os dados relativos ao país que eles divulgam vêm do próprio Kremlin.
Enquanto isso, na Polônia, o número de abrigos para refugiados vem diminuindo, e os que sobraram dizem ter cada vez mais dificuldade para pagar as contas. É o caso do centro para refugiados na rua Modlinska, em Varsóvia, onde a Folha esteve no início de junho.
Jaroslaw Kalicki, gerente do local criado para grandes eventos e adaptado para refugiados no início da guerra, conta que, no auge da crise migratória, o edifício chegou a abrigar 4.500 pessoas ao mesmo tempo. No total, 85 mil ucranianos teriam passado por lá.
Hoje, cerca de 200 migrantes vivem no espaço. Placas de MDF e cortinas improvisadas com lençóis estendidos separam um quarto do outro. Idosos e pessoas com algum tipo de doença são a maioria dos moradores, segundo Kalicki. Mas há também mulheres grávidas e com filhos —cerca de 25 crianças vivem no local. “Eles não sabem para onde ir”, diz o gerente.
O gerente, que não tinha tido nenhuma experiência na área da ajuda humanitária antes da Guerra da Ucrânia, conta que a maioria das organizações que no início contribuíam com o centro se afastaram do projeto antes de o conflito completar seis meses. O mesmo se deu com os voluntários e com outras instituições semelhantes na Polônia.
Saltmarsh, do Acnur, diz que é natural que a comoção com a situação dos refugiados ucranianos diminua à medida que a guerra se estende. Além disso, ele explica, com o passar do tempo, há uma espécie de institucionalização do cuidado com os refugiados, com a responsabilidade por ele sendo passada do voluntariado e da iniciativa privada para as autoridades locais e municipais.
Demétrius Cesário Pereira, professor de relações internacionais da ESPM, lembra ainda que hoje o conflito no Leste Europeu têm que disputar a atenção da mídia e das pessoas com outros, como a guerra Israel-Hamas. “Talvez os europeus já tenham gastado muitos recursos, não só com a recepção de refugiados, mas na própria guerra, com armamentos, ajuda financeira à Ucrânia, sanções em relação à Rússia. Uma série de gastos que não estavam previstos.”
Enquanto isso, os ucranianos começam a nutrir cada vez mais dúvidas sobre voltar ou não ao país natal. Relatório do Acnur mostra que, de 2023 para 2024, a fração de refugiados indecisos quanto à possibilidade passou de 18% para 24%, e os que não têm esperança de retornar foi de 5% pra 11%.
Quando a reportagem perguntou à refugiada ucraniana Tania, 40, que trabalha como cozinheira no abrigo em Varsóvia, ela se disse dividida —”50 a 50″, afirma, recorrendo às poucas palavras em inglês que sabia.
Questionada sobre como tem sido sua experiência na Polônia, Tania apela para gestos. Junta as palmas das mãos e inclina a cabeça sobre elas, imitando um travesseiro, e fecha os olhos.
“Na Polônia, ela consegue dormir”, traduz Kalicki, o gerente. Em seguida, ela puxa com os dedos o canto dos lábios para cima, forçando um sorriso. “Aqui, ela consegue sorrir.”