Embalado por uma retórica comunista clássica, chamando o ditador Kim Jong-un de “camarada”, Vladimir Putin desembarca nesta terça (18) em Pyongyang. É sua primeira viagem em 24 anos à capital do obscuro regime da Coreia do Norte.
Como cartão de visitas, o presidente ordenou o início de um exercício militar de dez dias com 40 navios e 20 aeronaves de sua Frota do Pacífico em torno de águas da península coreana e do Japão, pontos que concentram quase 80 mil militares americanos.
A viagem é qualificada no Ocidente como o aprofundamento de uma relação estratégica e comercial, na qual Kim incrementará o arranjo em que recebe tecnologia espacial e de mísseis russa, além da ocasional limusine presidencial, em troca de munição para Putin empregar na Ucrânia.
Mas a retórica do russo mostra que, se tudo isso pode ser verdade, há uma intenção outra: evidenciar um aliado da Guerra Fria na versão 2.0 do conflito, no qual a União Soviética cedeu espaço para a China, mas a Rússia segue como parceiro importante deste polo. Do outro lado, segue Washington.
A Coreia do Norte, rival da aliada americana Seul, vive o pior momento de relacionamento com o sul da península dividida pela guerra de 1950-53. Após o fracasso de uma aproximação promovida por Donald Trump após testes de mísseis capazes de atingir os Estados Unidos em 2017, a relação com sul-coreanos e americanos é glacial.
Kim promove exercícios com suas forças capazes de empregar alguma das 50 ogivas nucleares que detém com regularidade, e testa mísseis balísticos quase todo mês. Tem fracassado consistentemente no lançamento de satélites, e é aí onde os russos entram também —em sua viagem ao país de Putin no ano passado, foi recebido numa base espacial.
Como o ditador vive, para todos os efeitos, num sistema congelado politicamente nos anos 1950, faz todo sentido o tom adotado por Putin em sua carta ao líder, publicada na primeira página do Rodong Sinmun, o jornal oficial do regime.
“Camarada Kim”, escreveu o russo ao ditador, usando a expressão que até hoje é empregada por russos que viveram os tempos soviéticos. “A Rússia sempre apoiou e vai continuar apoiando a República Democrática Popular da Coreia e o heroico povo coreano na sua oposição a inimigo insidioso, agressivo e perigoso”, disse Putin, falando dos EUA.
Depois, disse que os americanos têm ameaçado a estabilidade na Eurásia ao expandir sua atuação, remetendo ao aumento da assertividade nuclear da aliança entre Joe Biden e a Coreia do Sul, para ficar nas preocupações de Kim.
Os exercícios de Putin miram mostrar que suas forças estão vivas no Pacífico, onde costumam operar em conjunto com a aliada China. É a segunda demonstração do tipo em uma semana: na segunda (17), uma flotilha russa de ataque deixou Havana após cinco dias em exercícios militares no Caribe, quintal estratégico dos EUA.
O fundador da ditadura, o avô do líder atual Kim Il-sung, liderou o conflito congelado há quase 71 anos com o sul capitalista da península coreana com forte apoio soviético e chinês. Após o fim da Guerra Fria, Moscou se afastou de Pyongyang e aprovou sanções na ONU contra o regime, mas agora o jogo voltou algumas casas.
Putin mesmo só havia visitado uma vez o país, em 2000, quando encontrou-se com o pai do ditador, Kim Jong-un. Agora, deverá passar a noite em uma hospedagem para chefes de Estado construída para a recepção ao chinês Xi Jinping em 2019, ao lado do monumento em homenagem aos dois Kims, pai e avô do atual.
Putin assume um pouco o papel de Xi, nesse sentido, dado que o chinês mantém uma distância regulamentar de Kim devido a sua interdependência comercial e financeira com o Ocidente. A Rússia, sujeita a sanções duras como Pyongyang, tem pouco a perder com demonstração de amizade.
Isso não tira o peso chinês da equação: o país responde por 90% do comércio exterior da Coreia do Norte. Devolvendo a mesura, além de banquete e concerto de gala, Kim deverá oferecer ao russo um raro desfile militar para um líder estrangeiro em Pyongyang. Lá, alguns dos mísseis balísticos que repassou a Moscou e que já foram encontrados como destroços na Ucrânia deverão estar presentes.
De seu lado, o ditador chamou a invasão da Ucrânia de “guerra sagrada do povo russo”. A visita de Putin ocorre após a cúpula de paz convocada pela Suíça no fim de semana redundar numa reunião de quem já apoiava a Ucrânia.
Os russos, que não foram chamados, celebraram a falta de consenso em torno de um comunicado final do evento.
Criticados por faltar e acusados na segunda pela Otan [aliança militar ocidental] de apoiar a guerra russa, os chineses responderam em tom inusualmente duro nesta terça. “Aconselhamos a Otan a parar de troca a culpa e plantar discórdia, e sim fazer algo prático para a solução política da crise”, afirmou o porta-voz Lin Jian.
Na sequência, Putin irá nesta quarta (19) ao Vietnã, país que mantém relações com o Ocidente, mas recusou participar do encontro suíço.