Em junho de 2004, María, uma jovem surda-muda de 19 anos, foi estuprada pelo tio em Oaxaca, no México, e engravidou. Ela decidiu interromper a gravidez, o que estava de acordo com a legislação local. Mas, no momento de realizar o aborto em um hospital público, “ordens superiores” suspenderam o procedimento.
Apoiada pelo movimento feminista, María interrompeu a gestação em uma instituição privada. O caso María, como ficou conhecido, aglutinou a luta pela descriminalização do aborto em todo o país. As marchas e protestos cresceram, assim como a incidência de diferentes grupos no legislativo e no judiciário.
Em 2007, a Cidade do México descriminalizou o aborto. Em 2019, o estado de Oaxaca fez o mesmo. E, finalmente, em 2023, o Supremo Tribunal votou pela descriminalização do aborto em todo o México.
A feminista Nallely Tello, integrante da direção colegiada do Consorcio Oaxaca, resumiu para mim essa história por telefone no último sábado, horas antes de ocorrerem no Brasil manifestações contra o PL 1904/24, que propõe pena de 6 a 20 anos de prisão para quem interromper uma gestação com mais de 22 semanas. Segundo a Polícia Militar, 5.000 manifestantes ocuparam a avenida Paulista no último sábado (15), 10 mil segundo as organizadoras. Além do arquivamento do PL, a esperança é que a onda feminista cresça para recolocar a agenda da legalização do aborto.
Nallely é responsável pela Casa La Serena, da Iniciativa Mesoamericana de Defensoras de Derechos Humanos. La Serena é um espaço de descanso e cura, onde mulheres que se dedicam a enfrentar a violência em suas comunidades passam de sete a dez dias, em programas desenhados de acordo com a necessidade de cada uma. Temazcal — banho de vapor tradicional indígena —, massagem e alinhamento dos chacras são exemplos de terapias oferecidas em conjunto com consultas médicas e psicoterápicas, além de oficinas, rodas de conversa e mais atividades de criatividade e convivência. Desde 2016, quando foi criada, a casa recebeu inúmeras ativistas que lutaram pelo direito ao aborto legal em toda a América Latina, além de mulheres que exerceram esse direito.
Um dos princípios de La Serena é que a defesa de direitos humanos não deve ser um sacrifício que exaure ativistas. Outro, que a proteção integral de quem sofre ameaças do Estado, de empresas e do narcotráfico inclui o descanso. Por fim, para as lutas coletivas perdurarem e alcançarem os objetivos esperados, é necessário cuidar de cada pessoa e das relações entre elas.
Ouvi falar de La Serena pela primeira vez em 2018, quando Nallely esteve em São Paulo para um seminário da Conectas Direitos Humanos, e ofereci uma vivência de escrita para ativistas colaboradoras da revista Sur. Em 2023, a convite da JASS – Just Power e do Feminist Centre for Racial Justice, estive na cidade do México para participar da Escola Feminista de Construturas de Movimentos. Aproveitei a oportunidade para contatar Nallely e agendar uma visita à La Serena para o dia 5 de setembro. Um dia antes de a Suprema Corte do México descriminalizar o aborto no país.
A Argentina legalizou o aborto até 14 semanas em 2020. O Uruguai, em 2012. A Guiana, em 1995. E a Guiana Francesa, colônia da França, em 1974. A Colômbia descriminalizou o aborto até 24 semanas de gestação em 2022. No Chile, o aborto não é crime em alguns casos desde 2021. No Brasil, assim como na Bolívia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela, o aborto ainda é crime, mas há exceções para gestações decorrentes de estupro, malformação do feto ou risco de morte para a mulher. Desde 2015, o Congresso tem debatido propostas para recrudescer a legislação brasileira.
“As lutas pela descriminalização do aborto são as que mais articulam os movimentos feministas porque reafirmam a consciência de que temos o poder de decidir se queremos ou não ter filhos, em que momento de nossa vida, e também nossa capacidade de tomar decisão sobre o nosso corpo”, me disse Nallely. Legalizar o aborto não é obrigar mulheres a abortar. É oferecer condições para que possam decidir sem serem presas ou mortas.
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