Cidade ao sul de Gaza, Rafah recebeu neste sábado (14) o grupo de brasileiros que tenta sair do território palestino rumo ao vizinho Egito. A passagem pelo posto de fronteira ainda dependia, porém, da autorização egípcia.
A ligação de Rafah —alvo constante de bombardeios durante as guerras de Israel contra o Hamas— com o Brasil, contudo, não vem de agora. Lá há um bairro chamado Al Brazil, em homenagem aos soldados brasileiros do Batalhão Suez, que atuou na região como parte de forças de paz da ONU de 1956 a 1967, no intervalo de dois conflitos envolvendo Israel e Egito —o de Suez e o dos Seis Dias.
Moradores mais antigos ainda guardam lembranças do convívio com as tropas do Brasil, e a boa imagem deixada pelos militares fez com que os palestinos impedissem uma tentativa israelense de rebatizar o bairro. A Folha esteve em Al Brazil em 2015. A reportagem publicada à época pode ser lida abaixo.
Al Brazil começa onde termina o asfalto. Numa mesquita modesta, homens fazem a oração do meio da tarde. Ao lado, garotos jogam futebol numa das várias quadras espalhadas pelo bairro da cidade de Rafah, extremo sul da faixa de Gaza, a poucos metros da fronteira com o Egito.
O bairro Al Brazil homenageia os soldados brasileiros do Batalhão Suez, que atuou na região como parte de forças de paz da ONU de 1956 a 1967, entre duas guerras entre Israel e Egito –a de Suez e a dos Seis Dias.
Jindi Abu Taha, 68, mora em Al Brazil desde os quatro anos. Em 1948, com a proclamação do Estado de Israel e a guerra que se seguiu, sua família fugiu com ele no colo de Beersheva, hoje em Israel, para Gaza. Abu Taha tinha por volta de dez anos quando chegaram os primeiros soldados da ONU.
“Esta área aqui estava cheia de brasileiros. Tudo isso era o Campo Brasil”, afirma, enquanto rascunha um mapa mostrando onde funcionaram algumas das instalações brasileiras.
Na mais próxima, há um carro virado e retorcido em frente a um prédio bombardeado, alvos da Força Aérea israelense nos confrontos do ano passado [2014]. “Ali, eu e outras crianças costumávamos ficar assistindo aos brasileiros cortando o cabelo”, completa Abu Taha, sorrindo.
No terraço do pequeno prédio onde mora com a família, Kamal al Akras, 64, recorda-se de quando os israelenses, tempos depois de tomar o controle de Gaza na Guerra dos Seis Dias, tentaram mudar o nome da vizinhança de Al Brazil para Al Nahla.
A expressão em árabe quer dizer “abelha de mel” e homenagearia um judeu que teria morrido no local e teria sido encontrado com tâmaras doces ainda intactas, preservadas em seu bolso, semanas depois.
“Os moradores não permitiram e mantiveram o nome em homenagem aos brasileiros, que eram muito queridos. A maioria nem acreditou na história”, diz.
Em alguns momentos, a conversa com ele é interrompida pelo barulho da movimentação de blindados egípcios do outro lado da fronteira. Após mais disparos e explosões, uma fumaça negra sobe no horizonte.
Akras mostra no celular um vídeo do filho Hussain, que, em meio aos mísseis e foguetes da última guerra em Gaza e procurado por integrantes do Hamas, grupo extremista que controla a faixa, entrou num dos túneis para o Egito e reapareceu meses depois, na Suécia.
Akras pergunta o nome do “Cristo de braços abertos”, enquanto um vizinho questiona se a presidente Dilma Rousseff era mesmo integrante da “resistência”, expressão muita utilizada entre palestinos. Ele se diz grato pelo apoio do Brasil à criação de um Estado palestino.
Ele se lembra, rindo, de quando, aos 14 anos, foi com amigos até a cerca do Campo Brasil assistir a uma partida entre soldados brasileiros e indianos —o jogo, tenso e disputado, terminou em pancadaria. “Todos gostavam dos brasileiros. Eram os únicos que iam a todos os eventos, todas as festas, e não somente às brasileiras.”
Akras diz que a vida hoje no bairro é mais difícil. “Com os túneis [clandestinos entre Gaza e Egito] operando, era bom. Havia de tudo um pouco, trigo, cimento, não sentíamos tanto o cerco. Agora, com eles fechados [pelos egípcios], é diferente.”
Morando em frente a outro campo de terra onde garotos jogam bola, Ansaf, que perdeu um filho na guerra, lembra que às vezes os brasileiros distribuíam pão e carne aos refugiados.
Ao se despedir, em tom de brincadeira, ela pergunta: “Os brasileiros irão voltar para tomar conta do campo?”.
Influência egípcia
Como a fronteira com o Egito está a poucos metros e se veem guardas egípcios no alto de torres de observação, a influência do país vizinho é significativa –um dos jovens, jogando descalço, veste o uniforme do time do Al-Ahly, do Cairo.
Várias das construções exibem marcas de balas, algumas delas nas paredes há mais de uma década. Rafah sempre esteve na linha de frente das guerras em Gaza.
Seguindo pelas ruas de terra, ouve-se à distância constante som de armas de fogo automáticas intercalado por disparos isolados, de diferentes calibres. “Tudo do lado egípcio”, afirma um morador.
Chegando ao fim de Gaza, onde terminam as ruas, palestinos armados sobem uma pequena barricada improvisada de terra.
Do outro lado da fronteira, apenas um muro separa a Rafah egípcia de sua homônima palestina.
Ao final de outra rua, com mais prédios crivados de balas, dois jovens se exercitam correndo em outro campo em frente a um café.
Uma faixa vermelha estendida exibe uma montagem com a foto do português Cristiano Ronaldo ao lado do argentino Lionel Messi e os dizeres “Café Estrelas do Brasil”, em árabe.
Percebendo o erro, um dos frequentadores conserta: “Neymar número um”.
O gerente, que faz as vezes de segurança, concorda em posar para uma foto, fuzil Kalashnikov em mãos.
“Eu também sou brasileiro”, brinca um vizinho, apontando para um senhor que dizem lembrar da época dos brasileiros no local.