A guerra entre Hamas e Israel acirra risco de um conflito regional via Líbano com o Irã, que é aliado da Rússia, que ataca a Ucrânia, que é protegida pelos EUA como o Estado judeu, que tem laços com a membro da Otan Turquia, que busca ser amiga de Joe Biden e Vladimir Putin, mas ocupa espaço de Moscou na disputa inconclusa entre Armênia e Azerbaijão.
Ligada a todos, mas na mira americana apesar do recorde no comércio bilateral em 2022, está a China, aliada de Putin e, por sinal, sempre de olho em Taiwan, que é defendido por Biden, que é adversário do russo e tem como parceiros antichineses Austrália, Japão e a Índia, que tenta, como a Turquia, estar bem com todos —menos Pequim.
Faltou a Europa, que vem meio a reboque dos Estados Unidos desde que a Rússia resolveu aplicar a cartilha anos 1930 e resolver “manu militari” suas pendências históricas com Kiev e vê brotos de insatisfação com o mundo liberal na Hungria, Polônia e Eslováquia. Isso fora a instável e nuclear península coreana, ou os conflitos climáticos na África e na Ásia.
Ufa? O cipoal surgido na onda globalizante do pós-Guerra Fria legou, após a ilusão de um domínio americano no famoso “fim da História” do historiador Francis Fukuyama, um mundo brutal e sombrio que corre em paralelo aos avanços tecnológicos de fazer inveja à vida dos Jetsons, família futurista de um desenho dos anos 1960 muito popular no Brasil.
A eclosão da guerra no Oriente Médio e seu temor de escalada, decorrente da brutalidade medieval imposta pelo Hamas, ocorre num momento em que as chamas da guerra seguem altas na Ucrânia, com um momento desfavorável para Volodimir Zelenski.
Dada a interligação citada acima, não são poucos, no imediatismo das redes sociais, que vislumbram um conflito global, a temida Terceira Guerra Mundial, que espelharia as divisões grosseiras da Guerra Fria 2.0 entre a China e os EUA.
Não é bem assim, felizmente, dado que hoje há 12,5 mil ogivas nucleares espalhadas pelo mundo, 90% delas na Rússia e nos EUA, mas 90 no mesmo Israel que se prepara para uma sangrenta batalha convencional.
Há um fio não muito invisível ligando todos os atores de grandes conflitos no mundo, devido às políticas de alianças estabelecidas após o colapso da curta hegemonia americana após a vitória sobre a finada União Soviética, em 1991.
Mas não se trata de alinhamentos imediatos, como os condicionados por tratados que tornaram quase inevitável, segundo a brilhante conclusão da historiadora Barbara Tuchman (“Os Canhões de Agosto”, 1962) contestada por autores como Niall Ferguson (“O Horror da Guerra”, 1998), a Primeira Guerra Mundial (1914-18) —e, como consequência, a Segunda (1939-45).
Exemplo claro disso é a posição dos países com peso relativo maior, como a Índia e, regionalmente, o Brasil, em buscar evitar esposar as sanções ocidentais contra a Rússia e ao mesmo tempo condenar de alguma forma a guerra.
Interesses locais, fragmentários e econômicos ditam o ritmo do jogo. Mas, desde que Donald Trump deu os salvos iniciais de sua versão da Guerra Fria contra Xi Jinping em 2017, a noção de blocos voltou a assombrar o mundo.
O Oriente Médio sempre foi um ponto de fratura dessa lógica, com impérios ocidentais ocupando e desocupando o espaço da dominação otomana e persa por toda a região. Não deixa de ser curiosa a emergência da Turquia, sede do grande sultanato de Constantinopla, como ator vital quando se discute a região, para não falar na resiliência do Irã.
Mas mesmo as escaladas regionais precisam ser vistas com um grão de sal. Por toda barbaridade em campo, o conflito na Ucrânia sempre respeitou uma regra invisível de não envolver diretamente a Otan [aliança liderada pelos EUA], que luta, como diz Moscou, por procuração por temer uma escalada nuclear.
No caso da crise em Israel, há outros fatores. Anualmente, o Irã dá cerca de R$ 3,5 bilhões ao Hizbullah libanês, R$ 500 milhões para o Hamas e outros grupos. Seu aliado sírio, Bashar al-Assad, tem um crédito de quase R$ 25 bilhões aberto em Teerã.
Isso diz algo: os aiatolás querem espezinhar Israel, evitar a união dos judeus com os sunitas da Arábia Saudita, mas preferem fazer isso por meio de representantes. O Irã tem problemas domésticos demais para enfrentar uma guerra aberta, assim como Putin não quer ter de se ver envolvido, dado que está na Síria salvaguardando Assad e seria chamado a campo.
O que não quer dizer que os blocos não se movam, como o apoio contínuo da China a Putin mostra. No Oriente Médio, aliás, a desenvoltura com que Xi aproximou Teerã e Riad encolheu ante a presença ostensiva do super porta-aviões americano USS Gerald Ford na costa israelense.
O fim da unipolaridade americana, um processo inconcluso, pode ter dificultado as coisas para Washington. Mas na hora em que a projeção de poder se faz necessária, além das assimetrias de guerras de drones contra tanques, os EUA seguem por ora imbatíveis.
Isso dito, a temporada de instabilidade está viva. Israel, pela natureza histórica do conflito, chama mais a atenção até pela violência renovada. Mas a Ucrânia está lá, sob risco de ver sua frente oriental colapsar, os EUA advertem para um possível ataque do Azerbaijão para finalizar o serviço com a Armênia, e sabe-se lá se Pequim vai deixar a retórica e decidir reintegrar Taiwan à força.
Hoje, nada disso configura o risco de uma guerra mundial organizada, pela natureza atomizada das relações internacionais. Claro, em 1910 ninguém diria que a Europa iria se massacrar em breve porque a economia vivendo sua primeira globalização financeira barraria a barbárie, na teoria.
Mas a alta complexidade atual tende a ser uma barreira mais eficaz do que há um século: mesmo a disrupção da pandemia de Covid-19 não logrou o apocalipse isolacionista temido. Isso não significa que as coisas não possam sair de controle, ainda que momentaneamente, dada e a cadeia de elos que unem os atores no palco.