Os últimos meses foram agitados para os diplomatas da Arábia Saudita. Desde o início do ano, o país no Golfo se juntou a organizações como o Brics; mediou o retorno da Síria à Liga Árabe; e reatou laços diplomáticos com o Irã, seu maior rival.
Mais recentemente, voltou a ser alvo de especulações sobre um inédito tratado de paz com Israel depois que o premiê Binyamin Netanyahu ventilou essa possibilidade em visita aos Estados Unidos para a Assembleia-Geral da ONU, no mês passado —e que Mohammed Bin Salman, ou MBS, considerado o verdadeiro dirigente do reino, confirmou o andamento das negociações em uma rara entrevista à Fox News.
Gerald Feierstein, que atuou como embaixador americano em vários países no Oriente Médio e hoje é diretor para questões do Golfo no Middle East Institute, lembra que Riad está em pleno processo de transição para uma economia independente do petróleo e, por isso, enxerga muito potencial no desenvolvimento de relações comerciais com Tel Aviv, sobretudo em áreas como tecnologia e segurança.
Já Joost Hiltermann, diretor para o Oriente Médio e o Norte da África do International Crisis Group (ICG), afirma que em muitos aspectos a normalização com Israel é, na verdade, um acordo entre a Arábia Saudita e os EUA. Uma das principais demandas do reino é um pacto de segurança tão robusto com os americanos que estes sejam obrigados a intervir em caso de um ataque. E isso, diz o diretor do ICG, é difícil que Washington se disponha a conceder.
Seja como for, a própria existência da iniciativa reflete a nova política externa do reino que, mais engajada e resoluta, demonstra sua busca por se “tornar um poder intermediário no cenário internacional”, nas palavras de Hiltermann.
Especialistas apontam que o ponto de virada da diplomacia de Riad aconteceu durante a Primavera Árabe, em 2011. Na época bastante dependente da tutela americana, o regime observou o ditador do Egito, Hosni Mubarak, até então um dos principais aliados de Washington na região, ser derrubado sem que a Casa Branca insinuasse uma reação.
O descaso americano ficou ainda mais claro em 2019, na gestão Donald Trump. Naquele ano, uma refinaria pertencente à petrolífera estatal saudita sofreu um ataque de drones supostamente iranianos e os EUA se recusaram a atacar Teerã ou puni-lo por sua presumida beligerância.
José Antônio Lima, doutor em relações internacionais pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da pós-graduação em jornalismo internacional da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado), diz que os episódios ajudaram a Arábia Saudita a entender que os americanos não eram aqueles mesmos parceiros inabaláveis que, em 1991, organizaram uma operação militar no Golfo para expulsar as tropas do Iraque que tinham invadido o Kuait.
Mas, acrescenta, todo esse processo foi profundamente acelerado quando MBS chegou ao poder —isto é, quando seu pai, o rei Salman, assumiu o trono, em 2015.
Hiltermann, do ICG, é outro que avalia que a política externa do reino se tornou muito mais assertiva com MBS. A questão, prossegue ele, é que o príncipe “começou cometendo uma série de erros que prejudicaram o status da Arábia Saudita no mundo”.
O mais famoso deles foi seu suposto envolvimento, denunciado por agentes de inteligência americanos, no assassinato do dissidente saudita Jamal Khassoggi, então colunista do jornal The Washington Post. Hoje, é quase impossível ler um texto sobre o príncipe saudita na imprensa ocidental que não cite o incidente.
Mas ainda houve outros episódios, como o sequestro do primeiro-ministro do Líbano ou a invasão do Iêmen, que deu origem a uma das piores crises humanitárias da história recente. “A Arábia Saudita percebeu que este não era o jeito certo de seguir adiante, e decidiu mudar sua abordagem”, diz Hiltermann.
Lima usa um termo cunhado pelo pesquisador belga Gerd Nonneman para explicar a política externa exercida pelos sauditas hoje: “multidependência gerenciada”. Basicamente, diz o professor, o reino passa a recorrer a diferentes potências, algumas delas rivais entre si, para garantir sua segurança e aumentar seu poder de barganha.
Um exemplo dessa estratégia foi sua aproximação com a China, observada em diversos momentos neste ano. Em março, a chancelaria do país asiático surpreendeu ao mediar a retomada de relações diplomáticas entre Arábia Saudita e Irã após uma ruptura de sete anos. No mesmo mês, Riad se juntou à Organização para a Cooperação de Xangai e seguiu se unindo a outros fóruns multilaterais dos quais Pequim é um expoente, como o Brics.
“Eles continuam tendo relações fortes com os EUA”, ressalta Feierstein. “Mas estão mais dispostos a tomar posições contrárias às americanas.” Foi o que aconteceu no final do ano passado, quando, em plena crise energética causada pela Guerra da Ucrânia, Riad juntou-se a Moscou para diminuir a produção de petróleo e assim aumentar o preço dos barris por meio do cartel Opep+, enfurecendo Washington.
Enquanto isso, o reino ainda busca se firmar como um poder no Oriente Médio ao contribuir para diminuir conflitos na região —muitos dos quais têm participação direta sua.
O ponto alto dessa tática ocorreu em março, com o restabelecimento de laços com o Irã. Mas ações anteriores da monarquia já apontavam para o caminho, como a suspensão dos embargos impostos ao Qatar; o esforço para trazer a Síria de volta à Liga Árabe depois de financiar por anos opositores do regime do ditador Bashar Al-Assad; e a tentativa, ainda em curso, de dar fim aos enfrentamentos que mantém com os rebeldes houthis, apoiados pelos iranianos, no Iêmen.