“Olá, sou Mahsa [nome fictício], de Cabul, e estou no Irã atualmente. Trabalhava para o governo afegão e já estou há dois anos esperando um visto de acolhida humanitária. Por favor, me ajudem a conseguir o visto para o Brasil, tenho dinheiro, caso seja necessário.”
Mensagens como essa passaram a lotar canais de comunicação de ONGs que atuam com acolhida de migrantes no Brasil desde que o governo alterou, na última semana, a política de vistos humanitários para afegãos. A portaria entrou em vigor nesta segunda-feira (2).
Ainda não há, porém, detalhamento de como as mudanças serão colocadas em prática. E é neste limbo informacional que uma confusão se instaurou entre a diáspora afegã que já está no Brasil e a que deseja emigrar fugindo do Talibã. A desinformação está em todo lugar.
O principal ponto de dúvida está no trecho que diz que a concessão de vistos estará sujeita à existência de vagas para abrigo por organizações que tenham firmado acordos com o Estado. A informação deu margem para a interpretação de que, para vir, o migrante deve ser “convidado” por alguma ONG ou receber algum tipo de “carta de patrocínio”.
À Folha o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, corresponsável pelo tema junto com o Itamaraty, afirmou que as ONGs não terão nenhuma interferência no processo de aprovação dos vistos e que nenhuma carta ou documento do tipo é necessário.
Segundo a pasta, as organizações firmarão acordos com o Estado para que se tenha conhecimento de quantas vagas há para acolher afegãos e qual o plano de acolhimento —o objetivo é facilitar oportunidades econômicas e aulas de português para os imigrantes, por exemplo.
A seleção de quem receberá o visto seguirá sendo feita pelo governo com apoio da duas agências da ONU, a OIM (Organização Internacional para as Migrações) e o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados).
Um edital com os detalhes, ainda segundo o ministério chefiado por Flávio Dino, deve sair em breve. Enquanto isso, afegãos no Brasil relatam estarem preocupados e confusos. Não apenas com essa alteração como também com o fim da concessão de vistos em algumas embaixadas, como a da Turquia, onde há vasta comunidade afegã que, ao ver seu visto temporário expirar, busca o Brasil como opção.
Wahidullah Seerat, 27, formado em administração de empresas na Índia, é um dos tantos afegãos que se dizem confusos e temerosos sobre os efeitos das mudanças. Há uma semana ele mora do Terminal 2 do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, onde espera vaga em um abrigo ao lado de dezenas de famílias que têm acesso limitado a chuveiros e reclamam das condições de higiene.
Ele compartilhou com a reportagem vídeos que circulam em redes sociais com as informações que, segundo o governo afirmou, estão incorretas. No TikTok, o vídeo de um repórter independente diz que, agora, “qualquer cidadão afegão que planeje obter um visto no Brasil precisará de apoio prévio da sociedade civil”. O conteúdo teve mais de 145 mil visualizações em apenas quatro dias.
Seerat viu-se forçado a se exilar do Afeganistão após organizar um evento sobre marketing em uma universidade de sua província, Badakhshan, com homens e mulheres —o regime repele eventos mistos e tem retirado os direitos das mulheres. Oficiais talibãs o procuraram e o ameaçaram. Até que ele fugiu para a Turquia.
No país do Oriente Médio Seerat ainda tem amigos afegãos cujos vistos temporários vencerão em breve. O sonho deles, assim, era vir para o Brasil. Mas o fim da possibilidade de solicitar o visto na embaixada de Ancara frustrou essa possibilidade e, relata Seerat, deixou-os em desespero. “Agora vão migrar para algum país da Europa em rotas ilegais, com risco de morrerem no trajeto.”
A Organização de Resgate de Refugiados Afegãos (Arro, na sigla em inglês), uma das ONGs que atua com afegãos, é uma das organizações que viu saltarem o número de mensagens recebidas, algumas delas até com oferta de propina, desde o anúncio da nova portaria.
Em nota, a Arro diz que o pouco que se sabe até aqui mostra “brechas regulatórias que, se não observadas, poderão gerar tentativas de fraudes e corrupção de todo o terceiro setor envolvido na causa”. Também critica o fato de nem as próprias ONGs terem sido procuradas para que entendam o papel que vão cumprir daqui para a frente.
A Conectas Direitos Humanos, por sua vez, afirma que as novas medidas geram uma restrição do acesso ao território brasileiro para afegãos e terceiriza um dever do Estado. “As ONGs têm capacidade limitada e não deveriam ter responsabilidade primordial por esse serviço. A acolhida humanitária deveria ser uma tarefa principalmente do Estado”, diz Marina Rongo, assessora da organização.
“Tudo isso aumenta o tempo de espera para essas pessoas que estão numa situação extremamente grave, tentando salvar as próprias vidas. E também aumenta os riscos de tráfico de pessoas e contrabando.”
Já o governo afirma que um dos objetivos da mudança é justamente “evitar a exposição de migrantes ao aliciamento por criminosos”. Como a Folha mostrou, um argumento-chave da decisão foi tentar conter a rota perigosa que muitos afegãos empreendem depois de chegar ao Brasil rumo aos EUA. No Terminal 2 do aeroporto de Guarulhos, não é difícil encontrar relatos de afegãos que começam a cruzar as Américas em trechos por vezes mortais como a selva de Darién.
Desde que iniciou a política de vistos humanitários para afegãos em 2021, pouco após o retorno do regime fundamentalista do Talibã ao poder, o Brasil emitiu ao menos 9.392 vistos. No país da Ásia Central, o perigo é não apenas a repressão política, mas também o colapso econômico. Dados da ONU mostram que ao menos 15,3 milhões de afegãos vivem em insegurança alimentar aguda. Ou seja: passam fome.
Das 34 províncias afegãs, 25 convivem com desnutrição. Metade das crianças de menos de 5 anos de idade e 25% das mulheres grávidas e puérperas precisam de apoio nutricional para sobreviver.
O Brasil, enquanto isso, segue sendo descrito como um destino “amigável”, de portas abertas. Para a veterinária Razia Rastgar, 26, foi a única oportunidade vista para buscar trabalho. Na província de Herat, ela atuava com organizações humanitárias que prestavam apoio a fazendeiros. Chegou a trabalhar com a FAO, organização da ONU para alimentação e agricultura. Mas há um ano o Talibã a proibiu de trabalhar quando cerceou a participação de mulheres em ONGs.
Rastgar está com o marido, com quem é casada há um ano, no aeroporto, enquanto aguarda uma vaga em um abrigo e uma oportunidade de voltar a trabalhar.