“Muitas pessoas não se dão conta disso, mas na verdade há dois embaixadores chineses em Washington: eu e o filhote de panda no Zoológico Nacional.”
Foi assim que o principal diplomata do país nos Estados Unidos abriu um artigo publicado em 2013 para celebrar o momento em que as duas potências estavam, em suas palavras, “determinadas a construir um novo modelo de cooperação, em que todos ganham”.
Passados dez anos, em meio a uma escalada de tensões, a China está chamando seus embaixadores mais carismáticos de volta.
O zoológico de Washington tem até o dia 7 de dezembro para devolver seus três pandas gigantes, Mei Xiang, 25, Tian Tian, 26, e Xiao Qi Ji, 3 —nascido na pandemia, o filhote é a estrela da virtual “Câmera Panda” com suas cambalhotas na neve.
Para se despedir de sua principal atração, foi organizado um “Panda Palooza”, festival de nove dias com artesanatos, yoga, DJ, exibição do filme “Kung Fu Panda” e bolos (estes para os ursos), entre outras atividades.
“A partida deles é triste. São meus animais favoritos e ele não vai se lembrar quando for mais velho”, diz Melissa Quist, 29, enquanto segura o filho, Muise, de 1 ano, no colo.
Ela dirigiu quatro horas para se despedir dos ursos na tarde da última quarta-feira (27). Embora o zoológico estivesse relativamente vazio, o corredor dos pandas estava lotado.
“Quem dera ser você”, diz Al Koroma, 32, enquanto passa em frente a Mei Xiang, deitada de bruços com os braços abertos, pendendo de uma pedra —a imagem da preguiça. Ele e o amigo, Gabriel Maletta, 33, eram vizinhos dos pandas quando eram crianças e costumavam ir sempre vê-los.
Maletta hoje vive em Denver, a mais de 2.500 km dali, e escolheu o dia do seu aniversário para fazer uma última visita. Questionados sobre o motivo da partida dos animais, Koroma hesita um momento, como se desconfiado da repórter estrangeira, mas em seguida diz: “É por causa da relação com a China”.
O prazo para a devolução está previsto no acordo entre o Smithsonian, grupo de instituições culturais e de pesquisa do qual o zoológico faz parte, e a Associação de Preservação da Vida Selvagem da China. Firmado antes da chegada dos pandas, em 2000, ele já havia sido renovado em 2010 e novamente em 2020.
Agora, não só não houve uma extensão, como também o zoológico afirma que não há nenhuma previsão de receber novos moradores para repor os que partirão. Vai ser a primeira vez em 23 anos que a capital americana não terá nenhum residente panda, espécie que se tornou um xodó da cidade nas últimas décadas.
Além de Washington, o zoológico de Memphis devolveu sua ursa em abril, e o de San Diego, um casal em 2019. Com a perda de Mei Xiang, Tian Tian e Xiao Qi Ji, restarão apenas quatro pandas nos Estados Unidos, todos em Atlanta —mas não por muito tempo, já que os dois filhotes devem partir no começo do ano, e seus pais, até o final, quando expira o acordo firmado pelo zoológico local.
A China tem um monopólio sobre a espécie, nativa das suas florestas de bambu, e usa os ursos em uma estratégia de soft power conhecida como “diplomacia dos pandas”. A prática começou nos anos 1950, com o envio dos animais a aliados como presentes. Nos anos 1980, em vez de dar os pandas, o país passou a fazer contratos de aluguel.
No caso de Washington, por exemplo, o acordo para receber Mei Xiang e Tian Tian determinou o pagamento de US$ 10 milhões (R$ 50 milhões) ao longo dos dez anos de vigência previstos originalmente. A China, por sua vez, fica obrigada a usar os recursos em esforços para a preservação da espécie.
Nos últimos anos, porém, a “diplomacia dos pandas” começou a mudar seu eixo, acompanhando a transformação da política externa chinesa. Enquanto ursos nos EUA, no Reino Unido, na Holanda e no Japão são repatriados, o líder Xi Jinping enviou um casal de pandas ao zoológico de Moscou antes de sua visita à Rússia em 2019, sob um contrato com vigência de 15 anos.
“Esse é um gesto de particular respeito e confiança na Rússia. Quando falamos sobre pandas, nós quase sempre terminamos com um sorriso no rosto”, disse o temido presidente russo, Vladimir Putin, na ocasião. “Esses animais são um símbolo nacional da China, e nós valorizamos enormemente esse gesto de amizade.”
Os dois países vêm se aproximando, movimento que ganhou força em meio à Guerra da Ucrânia e do aumento do antagonismo da dupla com o Ocidente. A aliança preocupa os Estados Unidos, cuja relação com a China vem esfriando desde o governo Donald Trump.
As ambições da potência asiática na região do Indo-Pacífico, em especial a militarização do mar do Sul da China, são um ponto especial de preocupação dos americanos. Durante o mandato de Joe Biden, Washington fez um esforço para travar laços mais fortes com Japão e Coreia do Sul, por exemplo, o que irritou o vizinho continental.
Biden também esteve recentemente no Vietnã e, na última semana, recebeu lideranças de ilhas do Pacífico na Casa Branca.
No campo econômico, os países travam uma batalha comercial, com a imposição de tarifas de lado a lado, e a tentativa dos EUA de garantir uma cadeia de suprimentos de chips que não passe pela China. No mês passado, Washington também impôs controles mais rígidos a investimentos privados de americanos, ação cujo alvo é a potência asiática.
Completamente alheios ao xadrez global, entre bambus e sonecas, os pandas foram pegos desavisadamente no meio desse conflito.
Mais que as outras devoluções, a partida dos pandas de Washington é especialmente simbólica porque os primeiros ursos recebidos pelo zoológico local foram enviados após uma visita histórica do presidente Richard Nixon à China em 1972, viagem que marcou o início da aproximação entre os países.
Diz a lenda que, durante um jantar em Pequim, a primeira-dama, Pat, observou uma lata de cigarros na mesa à sua frente. “Eles não são fofos? Eu amo eles”, disse ao premiê Zhou Enlai, sentado ao seu lado.
“Eu vou te dar uns”, teria afirmado o chinês. “Cigarros?”, questionou ela. “Não. Pandas.”
A versão chinesa do diálogo é um pouco diferente, atribuindo a Enlai a iniciativa na conversa, mas mantendo a confusão entre tabaco e ursos.
Na época, houve uma disputa entre os zoológicos americanos sobre quem receberia os dois hóspedes, Ling-Ling e Hsing-Hsing, mas a capital prevaleceu. Em troca, foram enviados à China dois bois-almiscarados.
Como a primeira-dama havia antecipado, um “pandamônio” se seguiu: mais de 1 milhão de pessoas foram ver o casal no primeiro mês de abertura ao público.
O zoológico fez diversas tentativas de cruzamento entre os dois, sem sucesso. Segundo uma reportagem de 1978, o macho fazia “posições bizarras que tornaram a procriação impossível”. Só em 1983 a fêmea engravidou, mas o filhote morreu pouco depois do nascimento. Houve outras quatro gestações, mas nenhuma deu certo.
Ling-Ling morreu em 1992 de falência do coração. A morte de Hsing-Hsing, por eutanásia, ocorreu sete anos depois. Cerca de um ano depois, chegaram Mei Xiang e Tian Tian.
As amigas Caroline Riley, 29, e Rahima Ghafoori, 28, lamentam a devolução dos animais. “Vai ser difícil imaginar o zoológico sem eles. Eu acompanhava o filhote desde que ele nasceu, estou muito animada para vê-lo hoje”, disse Riley ao chegar no “Panda Palooza”.
Como se soubesse que estava sendo convocado, Xiao Qi Ji surgiu nesse momento do fundo de seu quarto na “panda house” –espaço adjacente à jaula a céu aberto, dividido em espécies de cômodos envidraçados repletos de bambu, um para cada urso. A entrevista teve que ser interrompida: o desfile do filhote tornou impossível prestar atenção em qualquer coisa que não ele.