Em 2009, Cristina Kirchner nacionalizou as transmissões de partidas de futebol. Antes disso, elas tinham sido negociadas por preços astronômicos a canais pagos. A nacionalização do futebol deixou vários empresários insatisfeitos e os posicionou contra a então presidente. Por outro lado, a decisão alegrou os fãs de futebol, que, como sabemos, não são poucos na Argentina. Afinal, a partir de então o esporte passou a ser uma atração grátis, exibida pela televisão pública.
A TV Pública argentina passou por altos e baixos. Seus históricos estúdios já viram nascer várias estrelas do passado, depois formaram vários dos que atuam no cinema e no teatro. Porém, há tempos que sua estrutura pede novos investimentos, alguns de seus programas jornalísticos poderiam ter mais refinamento, e sua dramaturgia já conheceu dias melhores.
Mas, se algo de bastante positivo a TV Pública argentina realizou nestes últimos anos foi investir em uma programação educativa infantil para a faixa de 2 a 12 anos, de grande qualidade.
Nascido como um programa do canal Encuentro, também da TV Pública, o “Paka Paka” (que é o modo como se designa o jogo de pega-pega em quéchua), logo ganhou visibilidade e virou um canal à parte dentro da estatal. O “Paka Paka” venceu diversos prêmios da categoria e também foi indicado ao Emmy Kids, em 2022.
Pois o “Paka Paka”, e a TV Pública em geral, é a nova vítima de Javier Milei. O candidato hoje favorito a ganhar as eleições presidenciais já disse que pretende acabar com a TV Pública, entre as tantas instituições pelas quais passaria sua “motosserra”.
Na última semana, a polêmica escalou de proporção, com declarações infelizes, quase infantis, movidas pela fúria ideológica de Ramiro Marra, candidato de Milei para o governo da cidade de Buenos Aires (que tem status de província).
Marra foi questionado por uma repórter sobre por que acabar com a TV Pública. “Porque minha mãe diz que o que fazem ali é doutrinar as pessoas. Então vamos vender o imóvel para ajudar a diminuir a pobreza.”
As afirmações do candidato viralizaram nas redes, sob críticas de especialistas em programação infantil, pais, mães e professores.
Na trama do “Paka Paka”, o principal protagonista é o menino Zamba, um personagem animado que percorre os principais acontecimentos da Argentina. Ainda que a visão da história de Zamba puxe para o nacionalismo, os fatos importantes são mostrados de forma didática e com conteúdo crítico próprio para o entendimento de uma criança.
Marra foi novamente questionado sobre a TV pública no dia seguinte, desta vez especificamente sobre o “Paka Paka”. O jornalista Tomás Méndez perguntou a ele o que havia de errado com o desenho animado.
Marra respondeu: “Uma criança me disse que mostram os espanhóis como maus e os argentinos como bons [durante a colonização]”. Méndez então perguntou: “E não te parece, naquela situação, que foi assim? Mataram 90% dos nossos povos originários?”
E Marra: “Meu bisavô era espanhol e não era mau. Eu também tenho passaporte espanhol e não sou mau”.
O jornalista riu. “O fato de você ser espanhol não te exime de criticar o que os espanhóis daquela época fizeram”, disse, lembrando que até o rei Juan Carlos pediu desculpas pela colonização espanhola, em 1990.
Para o historiador Felipe Pigna, “ser espanhol não impede a capacidade de criticar as coisas que a Espanha fez de errado na história”.
O episódio seria apenas uma anedota caso não expusesse, de modo tão cristalino, a qualidade intelectual dos quadros que Milei teve de juntar às pressas para que fossem candidatos a congressistas ou prefeitos por sua força política. Sua própria formação como “ultraliberais” ou “ultradireitistas” parece baseada em meia dúzia de banalidades politicamente incorretas.
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