O efusivo aplauso de Volodimir Zelenski a um ex-integrante de uma unidade militar nazista recolocou a conturbada história da Ucrânia no centro da guerra narrativa subjacente aos combates reais que se desenrolam no país desde que a Rússia o invadiu, em fevereiro de 2022.
O episódio ocorreu na sexta (22), quando o presidente ucraniano participou de uma sessão no Parlamento do Canadá, em Ottawa, ao lado do premiê Justin Trudeau. Em um dado momento, o presidente da Câmara dos Comuns, Anthony Rota, destacou a presença na plateia de Iaroslav Hunka, 98.
Ele foi saudado como “um herói de guerra” que lutou pela Primeira Divisão Ucraniana. Zelenski acenou a ao veterano e o aplaudiu em duas ocasiões de pé, acompanhado por Trudeau e os demais presentes.
O que Rota esqueceu de contar é que a Primeira Divisão Ucraniana também era conhecida como Divisão Galícia, ou 14ª Divisão de Granadeiros das Waffen-SS, o braço militar das notórias tropas de assalto nazistas, a vanguarda ideológica do regime de Adolf Hitler (1889-1945).
Com a conquista de boa parte da Europa continental e a invasão da União Soviética em 1941, as Waffen-SS (SS armadas, em alemão) organizou diversas divisões com colaboracionistas, muitos deles interessados em agendas próprias. No seu auge, a organização contou com quase 1 milhão de soldados.
A 14ª divisão era sediada na Galícia, região da Ucrânia, e foi organizada exclusivamente para combater soviéticos. Muitos de seus integrantes eram simpatizantes do líder fascista Stepan Bandera (1909-1959), outros eram anticomunistas que viam nos nazistas aliados úteis para tentar conquistar autonomia ante Moscou.
Tal fenômeno se deu em diversos lugares, como a França, Bélgica, Estados Bálticos e Croácia, que tinha uma divisão das Waffen-SS formada por soldados muçulmanos da Bósnia, usando um fez (chapéu típico do Império Otomano) adornado com a temida caveira da organização.
A divisão de Hunka tinha cerca de 15 mil homens. A Waffen-SS foi declarada uma organização culpada por crimes de guerra no Tribunal de Nuremberg, que julgou as atrocidades nazistas, mas não houve casos específicos associados à unidade ucraniana. Há relatos abundantes, contudo, de abusos e execuções.
A reação foi imediata. Grupos judeus canadenses, críticos históricos do abrigo dado no pós-guerra a 600 ucranianos da SS, condenaram a ovação em pé dada a Hunka. Rota admitiu o erro e se desculpou, dizendo que desconhecia o passado do convidado. Não houve comentários de Zelenski ainda. O veterano, por sua vez, não se pronunciou. Não se sabe se ele teve envolvimento em qualquer crime de guerra.
Sempre que tem a oportunidade, Vladimir Putin lembra associações pregressa e atual entre a Ucrânia e o nazismo. Hoje, algumas unidades das Forças Armadas do país, como o famoso Batalhão Azov, têm inspiração claramente neonazista.
Até as cruzes pintadas nos tanques do país na guerra, para diferenciá-los dos russos, remetem às da Wehrmacht, o Exército regular nazista, do qual as Waffen-SS não faziam parte. São fatos incômodos em especial no Ocidente, que apoia Kiev.
Isso dito, nada sustenta a afirmação de Putin, usada inclusive como justificativa para a guerra, de que o judeu Zelenksi lidera um regime neonazista —ou “banderita”, como os russos costumam chamar, em referência a Bandera, reabilitado em Kiev após o fim da União Soviética, da qual a Ucrânia era parte, em 1991. São divisões complexas, como a troca do brasão soviético pelo ucraniano no principal monumento de Kiev, neste ano, mostra.
Previsivelmente, o Kremlin protestou. “Tal desleixo com a memória é ultrajante. Muitos países ocidentais, incluindo o Canadá, criaram gerações mais novas que não sabe quem lutou contra quem ou o que aconteceu na Segunda Guerra Munidal. E eles não sabem nada sobre a ameaça do fascismo”, afirmou o porta-voz Dmitri Peskov.
Ele afirmou que o fascismo “está tentando se firmar no centro da Europa, na Ucrânia”, e que a Rússia trava uma “luta irreconciliável” contra isso.
De seu lado, Moscou enfrenta acusações de crimes de guerra no conflito atual. Putin já tem uma ordem de prisão emitida pelo Tribunal Penal Internacional, sob acusação de deportação de crianças do vizinho, o que o Kremlin nega e chama de maquinação do Ocidente.
Nesta segunda (25), Erik Mose, o chefe da Comissão de Inquérito sobre a Ucrânia, do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, disse em depoimento ao órgão em Genebra que o trabalho do grupo identificou o “uso sistemático” de tortura por parte das forças russas.
Em Kherson, região parcialmente desocupada por Moscou no ano passado, a comissão descobriu que “soldados russos estupraram e cometeram violência sexual contra mulheres de 19 a 83 anos”, segundo Mose.
Ele afirmou também que os ataques contra a infraestrutura energética ucraniana, objeto de uma campanha aérea de outubro de 2022 a janeiro deste ano que parece estar recomeçando, estão sendo avaliados como crimes contra a humanidade. Moscou nega que alveje civis, mantendo o discurso de que suas ações têm objetivos militares.