Após 31 anos de disputa, o Azerbaijão anunciou nesta quarta (20) ter tomado o controle de Nagorno-Karabakh, região étnica armênia há séculos que esteve no centro de duas guerras desde os anos 1990. A proclamação do presidente Ilham Aliyev ocorreu após uma ofensiva-relâmpago de 24 horas.
Apesar do caráter remoto da notícia, ela é de grande importância geoestratégica, significando uma mudança no balanço de poder no sul do Cáucaso após uma aparente partilha combinada pelos dois fiadores dos rivais em campo: a Rússia, aliada histórica da Armênia, e a Turquia, que apoia o governo azeri.
A região é vital por seu potencial de escoamento da energia produzida na bacia do mar Cáspio e por ser, historicamente, uma das rotas de invasão potencial do território russo. O status final de Nagorno-Karabakh agora será definido em negociações.
Quem perde é o Ocidente, que vinha buscando apoiar o governo armênio do premiê Nikol Pashinyan, na esperança de tirar o país da órbita de Moscou, de quem depende economicamente. Nesta mesma quarta, foram encerrados exercícios militares entre forças de Ierevan e de Washington.
Pashinyan está com a cabeça política a prêmio, com centenas de manifestantes desde o início da ofensiva azeri à frente de seus escritórios, pedindo sua renúncia. Desafeto de Vladimir Putin, a quem acusava de corpo mole desde o acordo que pôs fim à mais recente guerra com o Azerbaijão, em 2020, ele agora pode perder o cargo.
A ofensiva de Baku foi certeira. Diversas posições militares, com cem tanques segundo Aliyev, foram bombardeadas com mísseis de precisão na terça (19), rompendo o cessar-fogo que teoricamente era monitorado por forças de paz russas desde o conflito de 44 dias há três anos.
Segundo o Observatório de Direitos Humanos de Artsakh, como Nagorno-Karabakh é chamada pelos armênios, 200 pessoas morreram na ofensiva. O número não é qualificável, mas a capitulação, sim.
O governo local em Stepanakert, a capital, disse estar ciente dos termos do cessar-fogo negociado novamente por Moscou com Baku: entrega de todas as armas e dispensa de pessoal militar sob seu comando.
Não há uma palavra sobre a autonomia, mas Aliyev tratou disso como fato consumado. “Vamos tornar a região um paraíso novamente”, afirmou, prometendo absorver sem traumas os 120 mil habitantes do local à sua população, de 10 milhões de pessoas. O presidente falou sobre projetos educacionais e sociais.
A história local desencoraja tais lentes róseas, quanto mais paradisíacas. Milhares de pessoas, de 17 mil a 30 mil segundo as estimativas, morreram nos confrontos dos anos 1990. Outros 6.500, em 2020. O fato de o corredor viário que liga Nagorno-Karabakh à Armênia, conhecido como Lachin, ter sido fechado várias vezes pelos azeris neste ano torna as perspectivas sombrias.
“Eles [azeris] estão basicamente dizendo que nós devemos sair, não ficar aqui, ou aceitar que isso é uma parte do Azerbaijão. Isso é uma típica operação de limpeza étnica”, afirmou um ex-dirigente local, Ruben Vardanyan, no X (ex-Twitter).
Putin conversou com Pashinyan por telefone e, segundo o Kremlin, o armênio está ciente da situação estabelecida. O premiê havia deixado claro, em fala mais cedo, que não tomou parte das negociações entre Rússia e Azerbaijão.
Na prática, elas provavelmente foram acertadas no encontro pessoal entre Putin e o turco Recep Tayyip Erdogan, no dia 4 passado em Sochi, na Rússia. Eles em tese falaram sobre o acordo de grãos do mar Negro, ora suspenso, mas o desenrolar dos acontecimentos possibilita suposições críveis sobre o tema do Cáucaso.
Desde que Baku acelerou a pressão sobre o enclave étnico armênio, Pashinyan passou a denunciar a falta de comprometimento de Putin com a região, acenando pontualmente ao Ocidente. Não por acaso, foram os europeus os primeiros a correr para criticar a agressão azeri na terça.
Aliados diversos de Putin, contudo, sinalizavam que haveria troco para Pashinyan. Em outros tempos, a perda de Nagorno-Karabakh poderia ser vista até como uma humilhação para o poder russo no Cáucaso, dado que era um status quo bancado pelo Kremlin, mas as prioridades de Putin estão na Guerra da Ucrânia.
Não que isso não signifique novos tempos, com a diminuição do poder relativo russo sobre uma região historicamente sob seu controle, claro. Mas a Armênia, onde tem tropas e interesses de fato, não foi tocada por essa ofensiva azeri.
Com isso, a dúvida que fica, sendo esse raciocínio verdadeiro, é o que Erdogan prometeu em troca para o colega russo. A Turquia vem apoiando Putin na questão do acordo de grãos, mas isso parece pouco: Ancara é membro importante da Otan (aliança militar ocidental), e tem fornecido material militar para Kiev na guerra.
Segundo o Kremlin, Putin “demonstrou satisfação” com o cessar-fogo e com “as negociações que irão começar no dia 21 (quinta)” na conversa com o premiê armênio. Erdogan, por sua vez, havia reiterado que considerava as ações de Baku legítimas e Nagorno-Karabakh, parte do Azerbaijão, em seu discurso na véspera na Assembleia-Geral da ONU.
O rearranjo encerra, de forma trágica para os armênios que moram em Nagorno-Karabakh, mais de três décadas de turbulência.
A trégua começou às 13h (6h em Brasília) desta quarta, e que a força de paz russa que está na região desde o fim da guerra passada por ora permanecerá por lá. Moscou divulgou um ataque contra seus soldados cerca de seis horas depois, com mortos, mas sem detalhar quem atirou.
Em 2020, forças azeris apoiadas pela Turquia lançaram uma ofensiva e retomaram quase todos os territórios que haviam perdido no conflito ocorrido de 1992 e 1994 para a Armênia, que posicionou tropas em torno de Nagorno-Karabakh visando proteger a população local, historicamente ligada a si etnicamente.
O enclave não é, contudo, considerado território armênio por Ierevan, e sim uma república autônoma chamada Artsakh. Ele é uma reminiscência das fronteiras borradas durante a vida da União Soviética (1922-1991), da qual Armênia e Azerbaijão eram integrantes.
Quando o império comunista, que emulava o controle dos czares no Cáucaso para guarnecer sua fronteira sul contra rivais como os impérios Otomano (atual Turquia) e Persa (atual Irã), implodiu, os armênios étnicos vivendo no Azerbaijão ficaram isolados —assim como os azeris do território de Nakhchevan, espremidos entre Armênia, Turquia e Irã.
Isso levou à guerra no local em 1992, na qual Ierevan saiu em vantagem, que foi revertida há três anos. Agora, políticos armênios já especulam se Baku irá se dar por satisfeita ou buscará criar uma ponte terrestre pelo sul de seu país para conectar o Azerbaijão a Nakhchevan.