Enquanto líderes mundiais se acotovelam por destaque em seus discursos na Assembleia Geral da ONU, que começa nesta terça (19), os protagonistas do bloco adversário dos Estados Unidos na Guerra Fria 2.0 fazem outros planos.
O Kremlin confirmou que o presidente Vladimir Putin irá fazer sua primeira viagem ao exterior após ter a prisão decretada pelo Tribunal Penal Internacional, em março. O destino será a China de Xi Jinping, seu principal aliado no embate geopolítico com Washington e seus parceiros.
A ausência da dupla em Nova York não é inédita: Putin esteve virtualmente no plenário da ONU em 2020, durante a pandemia de Covid-19, e Xi participou presencialmente em 2021. Não deixa de ser uma ironia, dado que ambos os líderes incluem a palavra multilateralismo em praticamente todo o discurso acerca de política externa. Xi, em particular, já havia faltado ao encontro do G20 na rival Índia, e ele não tem uma ordem de detenção emitida.
Mas agora a retórica dá lugar à ação. Enquanto os voos chegavam com chefes de Estado e de governo aos EUA, a Rússia completava uma recepção pomposa ao chanceler chinês, Wang Yi. Em seus encontros em Moscou, discutiu a Guerra da Ucrânia e a tensão na península coreana —isso poucos dias depois de Putin encontrar-se com o ditador do Norte, Kim Jong-un, que é aliado de Pequim.
Adensando o cenário, o ministro da Defesa russo, Serguei Choigu, anunciou que irá fazer uma visita para discutir cooperação militar com o aliado Irã. O país do aiatolás, que vive às turras com os EUA, parece viver um momento de inflexão com a soltura de prisioneiros americanos, mas é muito próximo de Moscou.
São drones iranianos Shahed-136 que ganham uma pintura nova e o eufemístico nome Gerânio-2 que os russos enviam quase que toda noite para atacar alvos na Ucrânia. Nesta terça, houve explosões na cidade de Lviv, no oeste do país, ainda que Kiev afirme ter derrubado 27 dos 30 aparelhos suicidas.
Até aqui, os iranianos são os únicos fornecedores oficiais de armamentos para o esforço de guerra russo, o que pode mudar caso Kim de fato envie munições de calibre 152 mm para os obuseiros de Moscou. Não se sabe ao certo se os norte-coreanos têm capacidade de fazer alguma diferença, mas o fato é que a aliança entre os países deixou o campo da timidez histórica e foi exposta como peça da Guerra Fria 2.0.
A aproximação segue incomodando os aliados dos EUA no Indo-Pacífico. Nesta terça, os governos do Japão e da Coreia do Sul pediram para que Moscou cessasse qualquer contato militar com Kim, cujo regime tem treinado ataques nucleares táticos contra Seul quase toda semana.
O governo sul-coreano foi especialmente incisivo, prometendo medidas contra ações que ameaçassem sua segurança. É um recado para os planejados exercícios militares entre Moscou e Pyongyang, que poderão ter a participação da China, que ignora o fato de que as manobras entre Seul, Washington e Tóquio são percebidas da mesma forma pelo outro lado.
Por fim, a chancelaria chinesa anunciou que outro pária no Ocidente, o ditador sírio, Bashar al-Assad, visitará Pequim nesta semana. Ele conseguiu manter-se no poder em meio à guerra civil que se arrasta desde 2011 devido à intervenção militar de Putin a seu lado no conflito, em 2015.
O atual embate global ganhou corpo com a ascensão chinesa nos anos 2000, culminando com a chegada de Xi ao poder em 2013. O líder passou a converter o peso econômico de Pequim em poderio militar e político com diversas iniciativas, e foi levado a sério pelos EUA como rival: em 2017, Donald Trump lançou sua ofensiva contra os chineses em todos os campos possíveis, algo que só foi acirrado por Joe Biden.
Sobrará, na ONU, duas naturezas de palco. O americano e seus aliados poderão reforçar sua retórica contra a agressividade da Rússia e, por extensão, da China e outros parceiros. E o ucraniano Volodimir Zelenski fará a denúncia da invasão de seu país ao vivo. Será curioso ver como a mídia russa irá reportar isso, dado que o Kremlin baixou uma ordem para que o presidente não seja chamado pelo cargo mais.
O terceiro campo em jogo, dos emergentes, terá em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sua figura de maior relevo, com a ausência do líder mais importante do grupo, o indiano Narendra Modi. Caberá ao petista fazer a crítica à falta de representatividade do Conselho de Segurança da ONU, único órgão com algum poder na entidade.
Sua posição, contudo, será contestada pelo que o Ocidente liderado pelos EUA chama de alinhamento à Rússia na guerra, dado que o Brasil condena a invasão, mas não participa do regime de sanções contra Moscou, além de ter adotado desde o governo Jair Bolsonaro (PL) uma posição de neutralidade —de resto menos neutra do que a da Índia, que pode fazer isso por ser o país mais cortejado pelos EUA e pela Europa hoje.