Bernie Sanders disputou duas vezes a vaga de candidato pelo Partido Democrata à Presidência americana, em 2016 e em 2020. Mesmo sem conseguir superar nas primárias Hillary Clinton, que perdeu as eleições para Donald Trump, e em seguida Joe Biden, que se elegeu presidente, Sanders reúne os atributos de uma curiosa notoriedade.
Senador pelo pequeno estado de Vermont, ele é um dos poucos políticos verdadeiramente de esquerda a se manter à tona na política dos Estados Unidos.
Seu livro “Tudo Bem Ficar com Raiva do Capitalismo” acaba de ser traduzido pela Companhia das Letras e procura, com enorme convicção, desmontar a confusão corrente entre democracia e economia de mercado.
O senador está com 82 anos e tem poucos congêneres em seu país. Seriam o caso de Noam Chomsky, no meio acadêmico, ou de Eugene Debs, no meio sindical e político. Debs disputou cinco vezes a Casa Branca pelo Partido Socialista Americano e morreu em 1926. Sanders o elogia com superlativo entusiasmo.
Em termos imediatos, o ativista da esquerda americana toma Trump como adversário mais perigoso pelos diagnósticos invariavelmente equivocados que o republicano apresenta, a seu ver, para os problemas do país.
Como, por exemplo, ao acreditar que os EUA importam a criminalidade dos latino-americanos, e que o fechamento da fronteira com o México seria para isso uma solução. Ou então ao estimular crimes como o que vitimou em maio de 2020 o jovem negro George Floyd, asfixiado por policiais. Sanders enxerga em Trump o triunfo de um modelo estruturado pelas desigualdades que corromperam o modelo político americano.
Não se trata de apenas apontar para os bilionários Jeff Bezos, Bill Gates ou Warren Buffett, que antes da pandemia controlavam “tanta riqueza quanto a parte mais pobre da população dos EUA junta”.
Ou então as famílias mais ricas do país, os Walton, da rede de lojas Walmart, a Mars, de doces e chocolates, e a Koch, do conglomerado de energia, as três com um patrimônio de US$ 348,7 bilhões.
É para Sanders um modelo repulsivo de concentração de riquezas, que funciona em contraste com a pobreza crescente. Na prática, cerca de 45% da renda gerada vai para os bolsos dos mais ricos, enquanto os altos executivos de grandes conglomerados recebem vencimentos 350 vezes maiores que um assalariado de base.
Em outro trecho, o livro relata que, da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) ao fim da década de 1970, o aumento da produtividade acompanhou o aumento dos salários americanos. Mas desde então a produtividade cresceu 61,8%, enquanto o crescimento dos salários ficou em 17%. Isso é visto pelo autor como efeito corruptor no funcionamento econômico e jurídico do modelo de capitalismo americano.
O núcleo que tem mais dinheiro e mais poder “compra as eleições” como se elas fossem uma mercadoria. E em seguida financiam grupos de pressão para impedir mudanças que desfaçam a pirâmide de riquezas, em que apenas a minúscula minoria que está na ponta consegue maior conforto material. Ou seja, é a desigualdade que funciona de maneira a gerar mais desigualdades ainda e, com isso, tornar o sistema mais injusto.
Ainda em período mais recente, de março de 2020 a outubro de 2021, durante a pandemia, os 725 bilionários da população americana tiveram um aumento de 70,3% em seu patrimônio. Enriqueceram em pouco mais de US$ 2 trilhões.
Um capítulo paralelo é, nesse período, a queda da expectativa de vida, que era de 78,8 anos e que caiu em 2,26 anos. Culpa da Covid-19, mas também de um sistema de saúde desigual e no qual as companhias de seguro —equivalentes aos planos brasileiros— favorecem quem pode pagar muito e descuidam daqueles que pagam pouco. Ao contrário do Reino Unido, França, Itália ou Espanha, onde, por meio da intervenção do Estado, a medicina é gratuita para o cidadão.
Em tempo: durante a pandemia, o Brasil, por meio do SUS, foi mais igualitário nos tratamentos do que os EUA, que registraram 1 milhão de mortos.
O sistema educacional aparece entre os muitos parâmetros que Sanders utiliza para apontar desvantagens do capitalismo. Nos EUA, da pré-escola ao final do secundário, o sistema público é financiado pelos condados, que cobram impostos com base nas propriedades. Ou seja, locais com propriedades mais ricas pagam mais impostos e, com isso, têm professores e instalações de maior qualidade.
Quanto ao ensino superior, o americano é pago, contrariamente a países europeus que têm sistemas gratuitos e acessíveis democraticamente. Com isso, o capitalismo americano fornece um ensino de pior qualidade e não se qualifica da mesma forma para a concorrência internacional.