Ainda hoje há um país africano colonizado. O Saara Ocidental está ocupado pelo Marrocos desde 1976, depois de quase 90 anos de invasão espanhola, e esteve em guerra por independência até 1991, quando uma missão da ONU foi instalada com a promessa de realizar um plebiscito para a determinação do país. Os quase 266 mil km² de deserto no norte da África, à beira do Atlântico, são ricos em fosfato. Até hoje o povo saaraui —cerca de 600 mil pessoas divididas entre o território ocupado, campos de refugiados na Argélia e o exílio— clama pelo plebiscito. Quarenta e seis países reconhecem a soberania do país. O Brasil não é um deles.
Em outubro de 2023, visitei Laayoune, capital do Saara Ocidental, a pedido da ativista Mahfouda Lefkir. Nos conhecemos no Quênia, em 2022, no Festival República Feminista. Nascida em 1984, como eu, ela havia estado na cadeia por ter protestado contra a prisão arbitrária de seu tio, membro da Frente Polisário, organização de luta por libertação. Pediu que eu a visitasse e contasse sua história. Quase um ano depois, participei de uma atividade no Marrocos e, graças ao financiamento da Thousand Currents para a Casa Sueli Carneiro, aproveitei a oportunidade para chegar ao Saara Ocidental.
“Se não fosse a liberdade que nos foi tirada, eu estaria agora caminhando com você no deserto, onde olharíamos as estrelas e lhe apresentaríamos os costumes de nossos ancestrais”, ela me disse em árabe, no apartamento onde passamos cerca de 36 horas, intercalando entrevista, cozinha e descanso. Por seis horas tivemos a tradução árabe-inglês do jornalista Mayara Mohamed, membro do Coletivo Equipe Media. No restante do tempo, sua cunhada e também jornalista Salha Boutngiza interpretava algumas frases, quando o Google Tradutor era insuficiente. “A primeira coisa que faria seria construir uma tenda. A tenda é uma das nossas tradições e fomos banidos dela.”
Mahfouda explica a estratégia de dominação do colonialismo marroquino: apagamento da identidade saaraui; incentivo à ocupação do território por cidadãos do Marrocos; perseguição de ativistas. Quando foi presa, teve a roupa arrancada por homens que a espancaram e interrogaram depois de acessarem todos os arquivos de seu celular. Dormia no chão e passava longos períodos sem receber comida ou bebida. “Nunca me deixaram ler livros, jornais ou escrever. Tive crises de asma sem acesso a medicamentos. Podia receber visitas por no máximo sete minutos.”
O principal medo de Mahfouda, que teve um irmão assassinado na adolescência, é ver os filhos atacados pela ocupação marroquina. Ela deseja que sua menina e seu menino sejam educados com liberdade em um país independente, que não obrigue seu povo a estar dividido.
Clandestinamente, o movimento de mulheres saarauis promove encontros formativos sobre direitos humanos e feminismo, além de organizarem atos, costurarem bandeiras e produzirem panfletos denunciando arbítrios. Esses são os motivos das prisões e torturas. As ativistas não conseguem trabalho, e se tentam empreender, o governo marroquino acaba com a iniciativa imediatamente. Vivem da solidariedade de familiares. “Tenho me dedicado a sistematizar coletivos, associações e grupos de mulheres que não possuem apoio de nenhum tipo”, compartilhou Mahfouda.
Na coluna que estreio hoje, pretendo contar histórias de mulheres e movimentos de diferentes regiões do mundo, que tive a oportunidade de conhecer nos últimos dez anos. Além de resistir ao patriarcado racista cisheteronormativo neoliberal, as mulheres têm produzido formas de organização política de cuidado, respeito às pessoas e à natureza, amor. Revoluções em que podemos dançar.
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