Cinco dias após as chuvas que inundaram a Líbia, ainda não é possível dizer ao certo quantas pessoas morreram na tragédia. Corpos de pessoas desaparecidas vêm sendo encontrados a mais de 100 km da cidade de Derna, a mais afetada pelo desastre.
Imagens aéreas mostram a extensão dos danos da catástrofe —que, segundo as autoridades, pode ter matado pelo menos 20 mil pessoas.
As inundações catastróficas afetaram o leste do país no domingo (10). As águas romperam duas barragens e derrubaram quatro pontes em Derna, que praticamente submergiu quando o furacão Daniel atingiu o leste do país.
Imagens de satélite revelam a destruição no porto da cidade após as águas das enchentes arrastarem pontes, ruas e comunidades, deixando milhares de pessoas desaparecidas ou mortas.
Uma série de pontes cruzava o rio Wadi e ligava a área do porto ao lado oeste da cidade. As águas, descritas por um oficial como “semelhantes a um tsunami”, arrastaram as pontes e blocos inteiros de edifícios ao longo do rio, incluindo prédios residenciais de vários andares, prédios do governo e uma grande mesquita.
No bairro vizinho de Al-Eilwa, cerca de 96% das propriedades foram relatadas como inundadas. Muitas propriedades que ficavam próximas ao rio desapareceram, restando apenas suas fundações visíveis.
O prefeito de Derna disse à emissora de TV saudita Al Arabiya que entre 18 mil e 20 mil morreram quando as duas barragens romperam, liberando um tsunami de água enquanto a população de cerca de 100 mil habitantes dormia.
Ele afirmou ao canal que o cálculo do número de vítimas é baseado no número de comunidades destruídas pelas enchentes.
Não há dúvidas de que o número de vítimas confirmadas será maior do que as estimativas iniciais. A praia está repleta de roupas, móveis e brinquedos infantis de casas atingidas, e os corpos não recuperados permanecem sob os escombros ou no mar, aumentando o risco de doenças.
A ajuda internacional começou a chegar ao país, mas os esforços de resgate estão sendo dificultados pela situação política na Líbia, que é dividida entre dois governos rivais. A ONU, que tem equipes atuando em Derna e está direcionando reservas de alimentos para a região, alertou sobre o perigo de doenças causadas por água contaminada na Líbia.
Jens Laerke, porta-voz do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha), disse ao programa Today da Rádio 4 da BBC que o sistema de poços de água foi contaminado. “As pessoas precisam beber água e, se começarem a beber água contaminada, poderemos ver uma onda secundária de doenças e até mesmo mortes se não conseguirmos impedir isso.”
O subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, Martin Griffiths, disse que as necessidades mais prementes eram abrigo, alimentação e cuidados de saúde.
“Na Líbia, onde o acesso a Derna ainda é tão difícil, onde há os problemas agravados do rompimento da barragem, bem como da tempestade que vem do mar, esta é uma tragédia em que o clima e a capacidade colidiram”, disse ele em uma coletiva de imprensa em Genebra.
Uma análise das Nações Unidas revela que mais de 2.200 edifícios foram atingidos por águas de enchentes avassaladoras, e pelo menos seis pontes sofreram danos, assim como a área do porto. Cada ponto vermelho na imagem acima representa uma estrutura afetada pelas inundações.
Bairros severamente afetados, como Al-Bilad e Al-Maghar, em ambos os lados do rio, também abrigavam instalações de saúde utilizadas por pessoas de toda a cidade, de acordo com analistas de desastres do Reach (iniciativa humanitária de análise de dados).
As residências construídas no leito seco do rio, do lado voltado para o mar, foram as mais afetadas pela inundação quando as represas se romperam.
Hamad Shalawi, ex-funcionário local e membro do comitê de desastres, afirmou que a cidade foi destruída em questão de segundos, com famílias inteiras perdendo a vida à medida que edifícios residenciais desapareciam.
“A geografia da cidade mudou completamente, já que metade dela foi levada pelo mar”, declarou à BBC. As instalações comunitárias, incluindo edifícios ao redor do campo de futebol do Darnes Football Club, também foram destruídas ou cobertas por camadas de lama e detritos.
‘O mar continua trazendo corpos’
Familiares procuram desesperadamente seus entes queridos na esperança de encontrá-los vivos ou pelo menos identificar os seus corpos para o enterro. Testemunhas da catástrofe disseram à BBC que bairros e edifícios inteiros foram arrastados para o mar enquanto as pessoas dormiam.
E agora “o mar continua devolvendo dezenas de corpos”, disse Hichem Abu Chkiouat, ministro da Aviação Civil e membro do Comitê de Emergência no leste da Líbia.
O meio de comunicação local Derna Zoom postou na rede social X (antigo Twitter) que um quarto da cidade foi “completamente aniquilado”. “É como se uma bomba nuclear tivesse caído”, dizia a mensagem.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) e outras agências de ajuda instaram as autoridades líbias na sexta-feira (15) a pararem de enterrar as vítimas das enchentes em valas comuns. Até agora, mais de mil pessoas foram enterradas dessa forma, de acordo com um relatório da ONU.
A declaração pede que as vítimas sejam enterradas em sepulturas bem demarcadas e documentadas, pois um enterro precipitado pode levar a um sofrimento mental duradouro para os familiares enlutados.
Aqueles que conseguiram se comunicar com familiares e amigos na área afetada também estão em sofrimento. As pessoas estão vivenciando algo parecido com o “apocalipse”, disse o jornalista líbio Johr Ali à BBC. Um amigo dele, por exemplo, encontrou o sobrinho “morto na rua, atirado pela água de seu telhado”, disse o repórter.
Ali, que vive exilado em Istambul devido aos ataques a jornalistas na Líbia, disse que outro dos seus amigos perdeu toda a família no desastre.
“A mãe dele, o pai dele, os dois irmãos dele, a irmã Maryam, a esposa dele (…) e o filho pequeno de 8 meses… Todos morreram, a família toda dele morreu e ele me pergunta o que deveria fazer.”
As ruas de Derna estão cobertas de lama e escombros e repletas de veículos capotados. “As pessoas ouvem o choro dos bebês no subsolo e não sabem como chegar até eles”, disse o jornalista.
‘Parecia um tsunami’
O socorrista Kasim al Qatani disse à BBC que não há água potável em Derna e que os suprimentos médicos são escassos.
Ele acrescentou que o único hospital da cidade não pode mais receber pacientes porque “há mais de 700 corpos esperando no hospital, que não é tão grande”.
Embora a tragédia tenha começado com a tempestade Daniel, testemunhas relataram que a situação ficou fora de controle quando ouviram a explosão de uma grande barragem que acabou expelindo uma gigantesca torrente de água que “parecia um tsunami”.
As informações disponíveis até agora indicam que as chuvas provocaram o rompimento de duas barragens no rio Derna, “que arrastaram bairros inteiros com os seus moradores para o mar”, segundo Ahmed Mismari, porta-voz do Exército Nacional da Líbia, que controla o leste da Líbia. o país. .
Além de Derna, as cidades de Benghazi, Susa e Al Marj, todas no leste, bem como Misrata, no oeste, também foram afetadas pelo que foram as piores inundações das últimas quatro décadas no país.
País dividido
Rico em petróleo, o país do norte de África foi dividido entre facções concorrentes desde a derrubada do antigo líder Muammar Gaddafi. O coronel governou a Líbia de maneira autocrática por quatro décadas, até ser deposto e morto em uma rebelião apoiada por potências ocidentais em 2011.
Novos confrontos eclodiram em 2014, com a Líbia dividida entre duas administrações –uma com base no leste e outra no oeste, onde fica a capital Trípoli. Os dois lados assinaram um cessar-fogo em 2020, mas as disputas políticas continuam.
Em 2021, foi formado um Governo de Unidade Nacional em Trípoli, com Abdul Hamid Dbeibeh como primeiro-ministro reconhecido internacionalmente. Mas, no ano seguinte, o parlamento baseado no leste formou o Governo de Estabilidade Nacional.
A contínua polarização entre esses dois governos que afirmam ser os legítimos do país dificulta esforços internacionais de paz.Segundo o jornalista líbio Abdulkader Assad, essa divisão atrapalha o resgate, uma vez que as diversas autoridades não conseguem responder com agilidade a uma catástrofe natural.
“Não há equipes de resgate treinadas na Líbia. Tudo nos últimos 12 anos girou em torno da guerra”, disse ele à BBC. A administração com sede em Trípoli enviou um avião com 14 toneladas de suprimentos médicos, sacos para cadáveres e mais de 80 médicos e paramédicos.
Este texto foi originalmente publicado aqui.