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Katerina Kalitko: por que nós, ucranianos, não partimos – 11/05/2024 – Mundo

É impossível escrever um texto que abarque todos os crimes da agressão russa contra a Ucrânia. Enquanto escrevo, olho as fotos da região de Kherson, onde os russos lançaram 11 bombas. Também olho as fotos do hotel de Mikolaiv onde costumava me hospedar: tinha uma vista impressionante para o rio Bug Meridional. Após o bombardeio, o hotel se tornou uma ruína. Pouco antes, vejo um vídeo de uma torre de televisão em Kharkiv que, partida ao meio, cai como em um filme, atingida por um míssil russo.

Antes disso, em uma noite qualquer em Kiev, escuto por um longo tempo o potente som dos sistemas de defesa antiaérea: estão em algum lugar próximo, provavelmente na ponte sobre o rio Dnipro. Este pensamento me tranquiliza de repente e volto a dormir. Quando acordo de manhã e entro no carro para ir a Odessa, um míssil russo destrói a Academia de Artes Decorativas, Artes Aplicadas e Design de Mikhailo Boitchuk em Kiev, a 500 metros de onde passei a noite.

Meus amigos próximos vivem em Odessa. Após os bombardeios russos da primavera deste ano [no hemisfério Norte] contra a infraestrutura energética, a cidade começou a sofrer cortes sistemáticos de eletricidade.

Durante um desses apagões, ocorreu um curto-circuito na casa deles e, como consequência, um grande incêndio. A casa foi destruída, tudo o que fazia parte de suas vidas transformou-se em cinzas. Quando olho as fotos do incêndio, sei exatamente onde estão as janelas dos meus amigos. Delas sai a fumaça mais densa, porque ali está queimando a biblioteca montada com tanto carinho. Durante os dez anos de guerra, aprendemos bem como é um incêndio em uma biblioteca.

Nestes dias, minha comunidade de redes sociais está de luto por Alla “Ruta” Pushkarchuk, uma jovem crítica teatral e jornalista cultural que era especialista em topografia e geodésia em uma unidade de artilharia e morreu na região de Donetsk. Temos tantos mortos próximos que nos tornamos seus embaixadores: falamos em sua memória em todos os lugares importantes, recitamos seus poemas.

Uma vez tive que identificar um amigo de infância em um necrotério. Ninguém mais próximo a ele estava lá naquele momento, exceto o cachorro, mas o testemunho do cão não podia ser registrado no protocolo.

Após o impacto de uma mina russa, não restou muito do meu amigo, mas seu rosto sobreviveu parcialmente, e ele tinha uma pálpebra com cicatrizes. Lembro-me de como ele a rasgou em um galho de uma velha nogueira; éramos então uma tribo de índios, ou gente da floresta, como Tarzan. Brincávamos pulando nas árvores no jardim de nossos pais. Naquela época, a ferida nos assustava muito. E agora, graças à cicatriz, pude reconhecê-lo.

Amanhã haverá novas vítimas. Pode ser que sejamos nós. Alguém se acostuma com essa realidade? Torna-se um novo normal? Dificilmente. O cansaço, o esgotamento e a falta de um horizonte claro corroem uma pessoa como um pequeno verme: talvez de forma imperceptível, mas irritante. Mas ninguém foge.

Apesar de todo o inestimável apoio dos aliados ocidentais, ficamos sozinhos no frio corpo da guerra. Já não há um “grande adulto” em quem se apoiar, do qual esperar respostas para perguntas globais. Você tem que formular tanto as perguntas quanto as respostas.

O mais surpreendente é que, muitas vezes, nós temos as respostas. Estamos vivendo uma história verdadeiramente grandiosa e buscando uma linguagem para descrevê-la. Mas é uma linguagem que é desconfortável e assustadora.

Tendo chegado a este ponto, as pessoas costumam nos perguntar por que não partimos. Novamente, será impossível explicar plenamente a conexão metafísica dos ucranianos com sua própria terra, com o solo como tal, com o campo energético do idioma, com a egrégora da memória coletiva que está se formando agora para as próximas décadas. Será impossível explicar o sentimento de responsabilidade pessoal pelo país, o desejo de participar da corrente em que tudo está mudando de uma vez por todas, pelo menos para minha geração.

Então tenho que me contentar com uma resposta mais simples: há cem anos houve uma geração de intelectuais que emigrou após a perda do Estado ucraniano. É uma história triste, e não quero repetir seu destino.

Para todos nós que decidimos ficar na Ucrânia e investir nossos destinos em sua luta, preencher sua história com nossas vozes, conforta saber que, mesmo que morramos, nosso país terá seu próprio lugar em um mapa civilizado do mundo. Finalmente e para sempre será subjetivo, completo, claramente definido e interessante por sua força, sua profundidade, a continuidade de sua história e sua resistência anticolonial.

Carta da Ucrânia é um projeto da campanha latino-americana de solidariedade ¡Aguanta Ucrania!, com apoio do PEN Club – Ukraine, ONG que reúne escritores, jornalistas e tradutores, entre outros.

Fonte: Folha de São Paulo

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