Com clima de festa e milhares de pessoas reunidas nas ruas, o aniversário de 50 anos da Revolução dos Cravos, movimento que pôs fim à ditadura em Portugal, foi marcado por hostilidades na sessão comemorativa pela data no Parlamento.
Representantes de três dos quatro partidos de direita com representação na Casa partiram para o ataque contra o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que dois dias antes havia declarado, durante um jantar com jornalistas estrangeiros, que Portugal deveria fazer reparações por seu passado escravocrata.
A única legenda de direita cujo discurso não teve conteúdo explicitamente crítico à declaração do chefe de Estado foi o PSD (Partido Social Democrata), atualmente no poder e da qual Rebelo já foi o líder.
Ainda que Portugal tenha tido um papel importante no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, tendo transportado quase 6 milhões de africanos para trabalhos forçados, mais do que qualquer outra nação europeia, o assunto ainda é tabu no país.
Depois de dizer que “história não é dívida”, Rui Rocha, líder da Iniciativa Liberal, criticou a ideia de reparações. “Quem declara ser nossa obrigação indenizar terceiros pelo nosso passado, atenta contra os interesses do país, reduz-se à função de porta-voz de sectarismos importados e afasta-se do compromisso de representar a esmagadora maioria dos portugueses”.
O ataque mais contundente, porém, partiu do líder do partida de ultradireita Chega, que acusou o presidente de agir como um traidor da pátria. “O senhor presidente da República traiu os portugueses quando disse que temos de ser culpados e responsabilizados pela nossa história e que temos de indenizar outros países”, afirmou André Ventura. “Pagar o que e pagar a quem? Se levamos mundos ao mundo inteiro, se hoje nos quatro cantos do mundo há alma portuguesa?”
Os comentários de Rebelo foram feitos na noite de terça-feira (22) em um encontro com jornalistas da Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal. Questionado se estava pronto para pedir desculpas pelo passado colonial e pelo tráfico de pessoas escravizadas, o presidente afirmou que o país “assume toda a responsabilidade” pelos erros do passado.
“Temos de pagar os custos. Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto”, afirmou Rebelo, sem explicar, contudo, como seriam feitas as reparações.
Em Portugal, o presidente ocupa o posto de chefe de Estado, mas não tem função executiva. A chefia do governo cabe ao primeiro-ministro, atualmente o também social-democrata Luís Montenegro. Ainda que não governe, o presidente pode pressionar o debate público sobre a responsabilização do país por crimes ocorridos no passado.
As declarações de Rebelo, reproduzidas inicialmente pela imprensa internacional, rapidamente tiveram grande impacto também dentro do país. Membros do governo teriam se irritado com o timing do presidente, uma vez que os chefes de Estado de todas as ex-colônias portuguesas na África encontram-se em Lisboa para os festejos da Revolução dos Cravos.
Uma reportagem do jornal Expresso afirma que um membro do governo classificou as declarações presidenciais de tóxicas, inoportunas e com potencial de atrapalhar a cooperação com os PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa).
Apesar da repercussão de suas declarações, Rebelo, cujo pai foi ministro do Ultramar —como as colônias passaram a se chamar após uma espécie de reconfiguração de marca– não abordou o tema em seu discurso no Parlamento nesta quinta-feira, como fizera em 2023.
As possíveis reparações também ficaram de fora da intervenção presidencial justamente na cerimônia especial que reuniu os líderes das ex-colônias portuguesas, que conseguiram a independência –ou a tiveram reconhecida por Portugal– após o fim da ditadura lusa. Embora tenham feitos falas críticas à colonização e seus efeitos, os líderes africanos tampouco abordaram a questão reparatória.
O presidente de Angola, João Lourenço, teve uma das falas mais duras sobre o passado colonial na África. “Enquanto o povo português lutava, nós, os povos africanos colonizados, lutávamos desde o século 15 contra escravatura e pilhagens das nossas riquezas. Lutávamos contra os abusos do regime colonialista contra os nossos povos durante séculos. Lutamos pela nossa dignidade enquanto seres humanos que somos, que devem ter o mesmo direito à liberdade, o direito a sermos os senhores do nosso próprio destino.”
Nas ruas do país, porém, o clima foi de festa. O tradicional desfile da avenida da Liberdade, no centro de Lisboa, bateu recorde de público. Uma espécie de congestionamento de pessoas e de grupos desfilando fez com que o ato terminasse mais de uma hora após o previsto.
Uma das presenças mais celebradas do dia foi a de Celeste Caeiro, 90, mais conhecida como “Celeste dos Cravos”. Foi ela que, em 1974, distribuiu as flores aos soldados que participaram do golpe de Estado contra a ditadura, dando assim nome à revolução.
Acompanhada da família, Celeste participou da marcha e repetiu o gesto de distribuir os cravos.
Apesar da lotação, a festa transcorreu de forma geral com tranquilidade. Diversas famílias foram em peso para as celebrações, que contaram ainda com um desfile de chaimites, os tanques que transportaram os militares que fizeram a revolução.
Com um cravo em uma mão e a mochila da neta na outra, a professora Mafalda Duarte, 68, acompanhou o percurso ao lado das filhas e da primeira neta, agora com 4 anos.
“Eu venho quase todos os anos e nunca vi nada assim, com tanta gente”, disse ela, que conta ter transformado as comemorações da revolução em uma celebração da família. “Sempre trouxe as minhas filhas e agora a mais velha trouxe a minha neta. Enquanto eu tiver forças, vou descer a avenida da Liberdade para honrar o 25 de Abril.”