O audacioso ataque com dez mísseis de cruzeiro ocidentais contra o coração da Frota do Mar Negro na Crimeia anexada expõe uma das principais vulnerabilidades russas na Guerra da Ucrânia e desafia a retórica de Vladimir Putin acerca da soberania de seu país.
Começando pelo aspecto militar, a nova capacidade de alcance obtida com os mísseis Storm Shadow e Scalp-EG, versões respectivamente britânica e francesa do mesmo modelo, é uma dor de cabeça considerável para Moscou.
Sua frota baseada em Sebastopol, mas com portos em outros pontos como Novossibirsk (Rússia) e na costa ocupada do mar de Azov, era considerada um fator de dissuasão formidável para Putin. Todo o arranjo ora suspenso para exportação de grãos da Ucrânia era baseado na certeza de que os russos dominavam a porção norte do mar Negro.
Isso segue sendo verdade, parcialmente. Moscou ainda comanda uma frota respeitável, com 5 submarinos, 5 navios principais, 32 navios de patrulha, 10 antiminas e 6, de operações anfíbias. Segundo o site de monitoramento Oryx, desde o começo da guerra Moscou perdeu 16 navios, 10 deles afundados.
A Ucrânia, por sua vez, não tem uma Marinha de fato, com seus navios principais tendo sido destruídos. Mas sua flotilha de drones navais e, principalmente, os novos mísseis, mostram que Moscou corre o risco de novos reveses se expuser seus ativos militares na região.
O ataque a Sebastopol foi precedido de ações de inteligência, com desembarques pontuais de forças especiais na península. A mais notável foi a destruição de uma poderosa bateria antiaérea S-400 posicionada ao norte de Sebastopol em um ataque com uma versão terrestre do míssil naval ucraniano Netuno, há duas semanas.
Sem a cobertura, ao menos 3 dos 10 mísseis de cruzeiro, que voam a velocidades subsônicas e são razoavelmente fáceis de derrubar, atingiram seus alvos e danificaram o grande navio de desembarque anfíbio Minsk e o submarino diesel-elétrico Rostov-do-Don, ambos em docas para reparos.
O míssil Netuno, aliás, esteve por trás do maior desastre até então para a Frota do Mar Negro, que foi o afundamento de sua nau capitânia, o cruzador pesado Moskva, no começo da guerra, em 2022. Desde então, boa parte dos navios e submarinos russos foram posicionados em portos mais distantes da área de conflito.
Com as armas ocidentais, de resto em número desconhecido nas mãos de Kiev, e os drones há poucos lugares para os navios de guerra de Putin operar com impunidade no mar Negro, área que desde o fim do acordo de grãos em junho entrou no radar de operações militares mais intensas, como bombardeios de portos ucranianos.
Agora é esperada uma retaliação, mas a proporcionalidade dela leva à questão política subjacente ao recado militar dado nesta quarta (13).
A Crimeia foi o primeiro território ucraniano absorvido por Putin, em 2014, como reação à derrubada do governo aliado que tinha em Kiev. Região histórica russa, havia um apoio grande ao controle de Moscou após 60 anos, apesar da ilegalidade do referendo que levou à anexação.
Diferentemente da disputa no também russo étnico leste da Ucrânia, que entrou em guerra civil naquele mesmo ano, nos meios diplomáticos ocidentais a Crimeia sob Putin era vista como um incômodo fato consumado.
A impressão é tão forte que é voz corrente nos bastidores do governo americano a resistência de Joe Biden a qualquer ação mais incisiva contra a península, que poderia ser deixada como um item de barganha numa negociação de paz futura.
A revelação de que Elon Musk vetou o uso de seus satélites para orientar uma grande ataque com drones navais contra Sebastopol no ano passado por temer uma reação nuclear russa dá a medida da questão. Não por acaso, o empresário virou meme nesta quarta, com internautas questionado “onde está a Terceira Guerra Mundial?”. Em tempo, os mísseis empregados não usam a rede Starlink, de Musk.
A Crimeia não é Kherson, território anexado com outros três no ano passado sem que os russos tivessem o controle militar sobre eles. Está integrada à economia russa, e Moscou gastou estimados US$ 5 bilhões só com projetos de infraestrutura nos primeiros anos da anexação.
Com dificuldades em sua contraofensiva, lançada em junho e até aqui sem muito a apresentar, Kiev pode apostar na disrupção do território da Crimeia com renovados ataques. Não vai ganhar a guerra com isso, mas obrigará Putin a fazer valer anos de promessas de proteção aos 2,4 milhões de moradores da região.
Os ataques por ora contidos à ponte-símbolo da anexação, que liga a península à Rússia continental, já davam um aperitivo do problema para o russo. Para eles, as respostas foram fortes, mas pontuais. Restará saber o que fará Putin, ainda celebrando o provável acesso às munições do ditador norte-coreano, Kim Jong-un.