Ao menos dois impasses na política externa do Brasil mostram que as dificuldades que o presidente Lula enfrentou para se colocar como mediador em temas globais, como a Guerra da Ucrânia, repetiram-se num contexto regional e mesmo com líderes com quem o Partido dos Trabalhadores tem laços históricos.
Na semana passada, Lula disse ao cardeal Pietro Parolin estar profundamente decepcionado com o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega. Durante audiência com o principal emissário do papa Francisco, o brasileiro lamentou que, no ano passado, Ortega nem sequer tenha respondido a pedidos de um telefonema para que ele pudesse interceder pela libertação do bispo Rolando José Álvarez —que ficou detido por mais de 500 dias e acabou expulso do país centro-americano em janeiro— e por outros religiosos perseguidos pelo regime nicaraguense.
O presidente relatou a Parolin ter tentado fazer o máximo possível, mas afirmou que Ortega se mostrou inflexível. O cardeal, por sua vez, agradeceu os esforços de Lula.
Houve ainda um segundo caso em que um antigo aliado de Lula na região ignorou apelos diretos por moderação. O presidente promoveu uma guinada em sua política em relação à Venezuela depois que o ditador Nicolás Maduro decidiu bloquear o registro da candidatura de uma adversária.
O líder venezuelano, no entanto, também fez pouco caso do pedido de Lula, que havia defendido que a oposição pudesse participar livremente do pleito.
Os dois casos revelam um cenário na América Latina mais complexo do que o imaginado por auxiliares do petista no final de 2022, quando ele derrotou Jair Bolsonaro (PL). De acordo com especialistas ouvidos pela Folha, o cenário é ainda agravado por um quadro de desarticulação política na região.
O PT é aliado histórico de Ortega, líder da revolução sandinista e no poder de forma ininterrupta desde 2007. A ditadura nicaraguense chegou a anunciar a libertação de Álvarez em meados de 2023, mas o religioso não aceitou a condição imposta por Ortega, de que deixasse a Nicarágua. O regime voltou a prendê-lo, e Álvarez só foi solto no início deste ano, com o compromisso de ir para o Vaticano —na prática, uma expulsão.
Ao longo desse processo, Lula teria tentado conversar com Ortega, mas seus pedidos não tiveram resposta.
Em relação à Venezuela, o brasileiro expressou sua frustração com Maduro no final de março, após o regime impedir o registro eleitoral de Corina Yoris. A acadêmica havia sido indicada para substituir María Corina Machado, principal nome da oposição, porém impedida pelo chavismo de concorrer a cargos públicos.
Em reunião com Maduro no início de março, em São Vicente e Granadinas, Lula havia defendido que o pleito venezuelano precisa ser o mais democrático possível. Ele também fez uma comparação com sua própria situação em 2018, quando, preso no âmbito da Operação Lava Jato, indicou Fernando Haddad (PT) para substituí-lo na eleição presidencial.
“Eu indiquei outro candidato, perdemos as eleições. Mas fez parte do jogo democrático. Participei, perdi, paciência”, declarou o presidente dias depois, ao se referir à reunião com Maduro. O petista disse ainda que o bloqueio chavista contra a oposição é grave, revertendo a postura adotada até então de relativizar as críticas contra o ditador.
Para Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard, Lula tem tido dificuldades de projetar sua influência política mesmo com governos “do mesmo corte ideológico”.
“O caso da Nicarágua mostra que o peso gravitacional do Brasil na América Latina vem caindo gradativamente. Não somos prioridade imediata para esses países face a outras potências”, diz.
Em referência específica à América do Sul, Kalout aponta ainda que está em curso um “processo de fragmentação política e econômica”. Para ele, isso “decorre da ausência de um país que é capaz de unir e ter um projeto claro de integração baseado em desenvolvimento e investimento”.
“Integrar sem investir e propor apenas uma visão política não é mais possível”, afirma.
Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional da UFMG, por outro lado, afirma que não é possível avaliar a influência do governo Lula na América Latina apenas olhando o caso da Nicarágua e da Venezuela.
“A gente tem que resgatar outros episódios em que Lula foi bem-sucedido, por exemplo na mediação do conflito entre Venezuela e Guiana. A bomba foi desarmada e, pelo menos por ora, é mais positiva do que negativa a participação do Brasil”, analisa.
Ele se refere à crise do Essequibo, região da Guiana rica em recursos naturais e reivindicada pela Venezuela. O Brasil chegou a ser garantidor de um acordo entre os dois países, mas Caracas assinou uma lei que trata o território guianense como parte da Venezuela —o que voltou a acirrar as tensões.
Lopes afirma ainda que a situação atual da região é muito mais desafiadora do que nos mandatos anteriores de Lula, quando havia uma convergência ideológica de líderes de esquerda.”Agora a América Latina é tremendamente heterogênea em relação à primeira década do século 21″, diz.
Auxiliares de Lula e diplomatas ouvidos pela Folha concordam que a falta de um instrumento de integração regional é um dos principais obstáculos para a atuação internacional do governo no âmbito sul-americano.
Hoje não há em funcionamento uma organização internacional responsável pela coordenação política na América do Sul, a exemplo do que ocorreu com a Unasul e depois com o Prosul (aliança de governantes de direita).
Lula tentou relançar um projeto de integração numa reunião de presidentes em Brasília em maio do ano passado, mas houve veto à recriação da Unasul —que acabou vista por alguns países como um projeto ideológico de esquerda.
Os países então acordaram o lançamento de uma iniciativa chamada Consenso de Brasília, em que ministros dos diferentes governos têm se encontrado periodicamente para discutir suas áreas. O problema é que esse esforço tem sobrevivido principalmente graças ao impulso político dado por Brasil, Chile e Colômbia. Há dúvidas sobre a sustentabilidade de longo prazo em caso de mudança de orientação desses governos.