Eu me chamo Alicia Boero, tenho 78 anos e sou uruguaia. Nasci no interior e depois fui para Montevidéu. Tive uma vida comum de estudante, me formei e trabalhava como professora. Tive uma militância social normal, dentro da lei, e me casei com Eduardo Giorgi, que era bancário. Ele estava mais comprometido com a militância, tinha relações com o MLN [os Tupamaros]. Ele não esteve em nenhum momento na luta armada. Mas chegou um momento em que a situação estava tensa, foram atrás dele no banco. E aí ele passou à clandestinidade. Era o ano de 1972, e ele teve ir que para o Chile.
Eu tinha contato com ele de alguma forma, ele me mandava notícias. Muita gente do Uruguai ia para o Chile naquele momento, era o governo de Salvador Allende. Ele se foi em outubro ou novembro [de 1972]. Como eu era professora, combinamos que quando terminasse o ano letivo eu iria vê-lo no Chile.
Acabei ficando até março, na casa de uma amiga. Meu marido seguia no MLN e eu estava fora, então não podia ficar com ele. Em março, tivemos uma conversa e chegamos à conclusão de que não podiam me acusar de nada. Ele não sabia o que ia fazer da vida, porque a situação no Chile estava ficando complicada. Então eu voltei ao Uruguai. Em junho [de 1973] ele fez contato comigo. Decidimos que o casal importava mais que outras coisas e resolvemos que eu voltaria e aí veríamos o que fazer de nossas vidas.
Pedi licença do trabalho. Em 27 de junho, golpe no Uruguai. Eu saí no dia seguinte para o Chile, mas quando estava a caminho de Santiago ocorreu o Tanquetazo, uma tentativa de golpe. Fiquei parada na Argentina. Creio que em 48 horas abriram as fronteiras chilenas, estava em Mendoza e peguei um avião. Cheguei em 29 de junho de 1973. Era um momento em que todo mundo já esperava que houvesse um golpe no Chile. Não se sabia em que condições, nem como, mas a situação era insustentável, alguma coisa iria ocorrer. Eu vejo a gravidade das coisas depois que passaram. Sabia que podia ser sangrento, mas nunca imaginei que tanto. Também nunca pensei o que poderia acontecer com Eduardo, que tinha entrado clandestinamente. Não saímos do Chile porque ele estava muito vinculado com a política. Não pensava em fazer nada fora do que estivesse acordado com o grupo.
Havia grande carestia no Chile naquela época, faltava tudo. Não vou julgar se a política de Allende foi correta, mas acho que foi totalmente democrática. Porém a situação era grave. As pessoas para comprar pão tinham de fazer fila de duas horas, para comprar carne era preciso descobrir onde estavam vendendo.
Antes do golpe, eu estava vivendo com Eduardo na casa de uma chilena ligada ao MLN. Eu não estava no MLN, então cuidava das tarefas domésticas da casa. Vivia a situação, se será hoje, se será amanhã, com o rádio sempre ligado e falando com as pessoas para saber o que aconteceria. No dia do golpe, a chilena, dona da casa, foi embora. Sei que estava ligada ao governo de Allende, não sei em que grau, nunca perguntei, mas era a primeira pessoa que tinha que ir. Seus amigos a buscaram e eu não a vi mais.
No dia seguinte, outra pessoa que vivia conosco disse que sua família conheceu no Uruguai um chileno que ofereceu a casa para os que não tivessem para onde ir até que a situação melhorasse. Tivemos que atravessar toda a cidade de Santiago. Não podíamos nem tomar ônibus, estavam parando todos. Foi a noite do 11 de Setembro, a pior experiência da minha vida. Nessa noite, havia metralhadoras, balas que repicavam no chão das ruas. Estávamos nós dois e as notícias eram tremendas e não sabíamos o que íamos fazer no dia seguinte. Caminhamos duas, três horas. Foi uma experiência realmente dura.
O que nos recomendaram foi: não levem roupa, não levem absolutamente nada, tentem passar o mais despercebidos possível. Víamos passar os caminhões, paravam, pegavam grupos de três ou quatro, interrogavam alguns, às vezes os levavam. Víamos sair das casas muitos levando livros e fazendo fogueiras. Isso me fez lembrar o livro de Ray Bradbury sobre quando se queima um livro [Fahrenheit 451]. Quando se lê, parece terrível, mas ver acontecendo…me faltam palavras.
Mas quero esclarecer uma coisa: minha situação foi privilegiada. Não sou uma representante clássica para nada do que viveram as pessoas no golpe do Chile. Eu cheguei legalmente e saí legalmente. Tive uma tremenda sorte de ter gente conhecida vivendo legalmente e que foi muito aberta. A minha situação foi difícil, de estresse, mas vivi tudo de uma maneira que não tem nada a ver com as situações terríveis que viveram outros.
No dia 12 chegamos à nova casa, as pessoas nos receberam muito bem. Então o dono disse: ‘vou falar com uns amigos que vivem aqui perto para que nos dividamos, não fiquemos todos aqui’. Vi aí algo que nunca tinha sentido no Uruguai, as diferenças sociais de classe. Era a Comuna de San Miguel, muito atacada depois pela aviação chilena. Eram pessoas de classe média normal, muito solidárias, coisa que não se via no bairro onde estávamos antes. Decidiram que Eduardo e outra garota iriam para outra casa, nunca soube o motivo, e eu e outra garota ficaríamos na casa aonde havíamos chegado.
Estava tudo bem até que dois ou três dias depois estávamos num jardim da casa e aparece um ônibus com carabineros. Pararam na casa onde estava Eduardo e entraram todos. Eu pensei o pior. Foi uma meia hora de tensão, saíram todos ao ônibus e não se sabia nada de Eduardo. O encarregado daquela operação falou com Eduardo e disse que obviamente não acreditava nos motivos pelos quais dizia estar naquela casa, mas que não ia fazer nada. Disse que ele tinha de sair dali e que se o encontrasse ali da próxima vez a situação seria diferente. Disse ainda que se apresentasse às 8h da manhã do dia seguinte num batalhão porque queria conversar com ele.
Eduardo me mandou um bilhete e me disse que se sentia moralmente obrigado a se apresentar. Combinou que nos encontraríamos depois em determinado lugar e que se ele não chegasse era porque não tinha saído. No dia seguinte, eu fui ao lugar e já vi a silhueta dele parado. Contou que foi interrogado, que a pessoa insistiu em nomes do MLN. Combinamos que eu sairia do Chile para qualquer lugar e que nos colocaríamos em contato de novo quando fosse possível. Eu voltei para casa, falei com o senhor que me disse que compraria passagem para o primeiro avião.
Saí em 21 de setembro. Ele me levou até o aeroporto, que estava cercado, pediu para falar com algum militar e disse que eu era uma senhora que tinha se separado do marido no Uruguai e que tinha vindo ao Chile à procura de trabalho, que estava como funcionária de sua empresa e que tinha ficado assustada com a situação depois do golpe e queria voltar para o Uruguai.
O militar quis me convencer de que aquilo não iria durar muito e que ficaria tudo tranquilo, mas era o que eu havia prometido a Eduardo. Fui para Buenos Aires, ao único hotel que conhecia. Tinha US$ 150. Minha situação familiar não era ruim, teria como dar um jeito. Minha mãe era argentina, eu poderia tirar a cidadania e arrumar algum trabalho. Me lembrei de um cunhado que falou de um amigo jornalista e eu tinha o número dele guardado em um papelzinho. Eu liguei e pedi que trocasse uns dólares para mim. E ele me disse: venha para cá.
Eduardo saiu não sei quanto tempo depois, porque ficou tentando entrar em alguma embaixada e aí conseguiu entrar na embaixada argentina quando abriram os portões para entrar uma caminhonete. Ele mandou uma carta para o Uruguai, porque não sabia onde eu estava. E aí me avisaram.
Ele foi para Santa Fé e me disse que fosse para lá. Eduardo nunca conseguiu um novo documento na embaixada uruguaia. Ficou ilegalmente na Argentina. Aí um dos companheiros que saíram da embaixada argentina com ele apareceu morto num terreno baldio. Decidimos que não poderíamos continuar lá. Ele e outras pessoas falaram com o Acnur [agência de refugiados da ONU], nos pediram para escolher dois ou três países aonde poderíamos ir e nos levaram para a Suécia.