Kate, eu te entendo.
Vou dizer o que ces vão pensar que é viagem: eu sabia.
Quando todo mundo começou a falar do sumiço da princesa, de uma “cirurgia abdominal” anunciada pelo palácio de Kensington em janeiro, do braço photoshoppado: eu imaginei.
Provavelmente é coisa de sobrevivente de câncer, que sempre tá vendo câncer em toda parte. Desenvolvemos algo entre o faro e a noia. Kate, eu sei.
Eu não sou uma princesa, nem tenho milhões de seguidores e paparazzis e responsabilidades reais.
Mas, quando fui diagnosticada, de repente tava todo mundo sabendo — sem nem eu saber como. Sem poder controlar.
Eu queria silêncio, necessitava fugir, me recolher; eu queria apoio e abraço dos meus; eu precisava de tempo.
Tempo pra entender a presença irascível da morte assim, de repente, num dia qualquer.
Por algum tempo depois do meu diagnóstico, me absorveu um profundo sentimento de perplexidade.
Perplexidade diante do abismo sideral entre Os Antes e Depois da Vida.
Lembro que era uma sexta-feira e fazia sol. Um sol amarelo-dourado de outono.
Quando cheguei no hospital pra pegar os resultados dos exames, lá nos meus adentros eu já sabia.
Seguiram-se um papel-diagnóstico, palavras e siglas dançando más promessas; e uma experiência fora-do-corpo na recepção de um hospital espanhol, sozinha, observada por grávidas e seus maridos esperando a hora de falar com seus ginecologistas sobre novas vidas.
Minha vida até então, pensei depois muitas vezes, tinha sido um sonho, um devaneio, uma doçura caridosa do destino; eu mudei. Eu tive que mudar.
Como diz a gueixa ao herói de Shogun, do James Clavell: There is only now, Anjin-san.
***
O vídeo da princesa revelando seu diagnóstico correu mundo esses dias.
De novo a minha projeção de sobrevivente-de-câncer entrou em ação: não posso deixar de me comover com o que parece um doloroso esforço para conjurar compostura, decência, dignidade, tranquilidade, todas essas coisas de princesa.
Mas vir a público não é suficiente. Não a deixam em paz.
A indefinição do discurso da Kate é exaustivamente escrutinada por oncologistas, jornalistas, comentários de redes sociais (será que é câncer de ovário?, ou de cólon?, será que a quimioterapia é preventiva mesmo?, o olho dela tremeu no minuto 3:33?) —
Talvez, lá no fundo, dormindo entre brocados e veludos, a cabeça repousando sobre travesseiros com penas de gansos reais, ela esteja também perplexa com Os Antes e Depois da Vida.
***
“Leave the problems of God to God and karma to karma. Today you’re here and nothing you can do will change that. Today you’re alive and here and honored, and blessed with good fortune. Look at this sunset, it’s beautiful, neh? This sunset exists. Tomorrow does not exist. There is only now. Please look. It is so beautiful and it will never happen ever again, never, not this sunset, never in all infinity.” (James Clavell, Shogun)
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