Esta semana, no Haiti, fui bombardeado por questionamentos. Diversos grupos já acusaram o primeiro-ministro, Ariel Henry, de estar em conluio com gangues para que atos de violência como os dos últimos dias sirvam para sensibilizar a opinião pública local, historicamente resistente à ideia de ocupação, e especialmente a internacional. Não se sabe ao certo se hoje há essa ligação entre Henry e as gangues, se os atos violentos foram um teatro ou se o primeiro-ministro teria perdido o controle.
A ideia é trazer uma nova missão, apesar da ineficácia das anteriores e de seus crimes impunes, que vão desde massacres de inocentes, introdução do cólera no país, estupros, até talvez o mais grave: apoio ao resultados da eleição de 2011, considerada fraudulenta e que colocou no poder praticamente o mesmo grupo que lá permanece.
Uma coisa é consenso no país: o Haiti passa por uma crise sem precedentes —política, jurídica, social, econômica e de segurança. Há uma crise de legitimidade do primeiro-ministro, empobrecimento, inflação de mais de 50%, ações humanitárias reduzidas por conta da insegurança, milhares de mortos, sequestrados e centenas de milhares de desalojados.
O país conta com apenas 30% das forças de segurança recomendadas pela ONU. Elas têm uma condição precária de trabalho. São os os principais alvos das gangues, que dominam 28 postos policiais e têm recursos milionários, provenientes da extorsão da população e de sequestros, que bateram recordes mundiais. Porto Príncipe está 80% dominada pelo crime: 600 mil armas circulam pelo país, vindas em sua maioria dos EUA.
A lista de tragédias é longa. Mas, maior do que esta é a lista de erros e de interesses escusos por parte de diversos grupos políticos e instituições.
Cerca de US$ 1 bilhão (R$ 5 bilhões) anual foi gasto na última missão (Minustah), que durou 13 anos e trouxe militares de 36 países para cá. Era uma estrutura caríssima, com trabalho concentrado no aspecto bélico, e que os próprios haitianos poderiam fazer, de forma mais econômica. Os focos: ‘’a) promoção do desarmamento da população; b) desarticulação dos grupos armados e das gangues; c) reestruturação e treinamento da Polícia Nacional Haiti’’.
Como é possível que uma missão, com tantos agentes internacionais, tenha apoiado grupos políticos, ligados aos EUA, que usam gangues para se manterem no poder, escanteando uma série de agentes políticos importantes, respeitados e com histórico democrático?
Ainda sobre o ponto b), enviaram-se militares e esqueceu-se de que cada jovem ‘’desarticulado’’ em grupos armados precisa de nova ‘’articulação’’, investimento e reinserção. E, por fim, os investimentos na Polícia Nacional do Haiti foram pífios.
A missão deixou uma bomba-relógio no país e saiu falando de sucesso. Tenta-se hoje trazer uma nova missão no mesmo modelo bélico e simplório –‘’missão não onusiana’’—o que, comprovadamente, não funciona aqui.
Antes de tudo, os problemas do Haiti são de infraestrutura, trabalho, saúde, educação. Nenhuma gangue coopta jovens que têm opções que os valorizem mais. O povo sabe qual tipo de apoio deseja. Já fui parado na rua incontáveis vezes por pessoas me pedindo, não comida, apesar da fome, mas o pagamento do boleto da escola dos filhos.
O Brasil continua tendo certa relevância local por uma razão: seu lugar no coração dos haitianos, apesar de tudo. É inegável o apoio do Brasil à migração legal com visto humanitário, entre outros projetos de cooperação no país. Mas quando vamos agir de forma enfática e planejada para que o haitiano possa ficar em seu país?
Já que temos visões diferentes entre Brasil e EUA sobre a primeira República Negra e o caráter dessas missões, o Haiti não merece ser um ponto de discórdia, assim como Palestina tem sido? O Brasil não conseguiria propor e liderar outras formas de cooperação Sul-Sul, antirracistas e anticoloniais?
Lembro-me de uma música, do grupo Tabou Combo, sobre o que desejam para o povo haitiano: ‘’Yo’’, em crioulo ‘’Eles’’: ‘’um gesto para eles, um carinho para eles, um favor para eles, honra para eles, uma mão para eles, uma bondade para eles, amizade para eles […] orgulho para eles, liberdade para eles’’.