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Guiana ergue ‘cidade do futuro’ Silica City sem projeto – 02/03/2024 – Mundo

É preciso passar por três pontes feitas de tábuas, pequenas casas de madeira distantes umas das outras e uma senhora lavando roupa dentro de um riacho para chegar ao local onde está sendo erguida Silica City. A cidade é uma promessa do governo da Guiana de um novo centro urbano “inteligente” e movido a energia limpa.

Não há qualquer sinalização ou propagandas, mas a população do pequeno vilarejo de Kuru Kururu, situado nas redondezas, sabe apontar a direção. Um operário no caminho de volta para a casa diz apenas para seguir em frente até avistar escavadeiras.

Lá, nenhum tapume delimita ou protege o canteiro de obras, por enquanto um punhado de ruas de terra cercadas por canaletas. Também não há placas apontando os responsáveis ou os custos da obra ou mesmo que ela é tocada pelo governo.

Na tarde de quinta-feira em que a Folha visita o local, vê poucos caminhões e funcionários. Mas Silica City é ali mesmo, garante Alfredo, um venezuelano que diz trabalhar no projeto há cerca de um ano, pilotando veículos e máquinas da construção civil.

Em fevereiro do ano passado, o governo anunciou a assinatura de contratos no valor de cerca de US$ 10 milhões (R$ 49 milhões) para a fase inicial do que o ministro da Habitação guianense, Collin Croal, chama de mega projeto. Mas o crédito pela ideia da cidade é do presidente do país, Irfaan Ali, de quando ele era o titular da pasta, em 2013.

A reportagem não encontrou moradores no entorno imediato de Silica City. A assessoria do presidente afirmou que o líder estava com a agenda cheia demais em razão do encontro da Comunidade do Caribe (Caricom), ocorrido nesta semana, e portanto não concederia entrevista para discutir o evento, o momento da Guiana e o projeto da cidade.

Os planos do governo simbolizam bem as expectativas, ambições e limites relativos ao novo momento econômico da Guiana. A começar pelo nome da cidade que, aparentemente relacionado aos prosaicos bancos de areia explorados pela construção civil na região, também remete ao famoso Vale do Silício americano, centro de inovação tecnológica —uma das metas do projeto em nível nacional.

Não há, contudo, qualquer explicação sobre o nome nos poucos sites e documentos disponíveis que mencionam Silica City. A reportagem também não encontrou em domínios do governo na internet qualquer documento, relatório ou estudo de impacto disponível sobre a cidade, cujo projeto ainda não existe. Há um acordo com a Universidade de Miami para a entrega de uma primeira versão do Plano Diretor em meados deste ano.

Isso não impediu, no entanto, que a primeira etapa do projeto já esteja em curso, abrangendo uma área de 15 km². “Estamos iniciando a construção das primeiras cem casas”, disse o presidente Ali durante encontros com comunidades próximas no início do ano passado.

A imprensa local relata questionamentos da população frente essa falta de transparência. Naqueles encontros de 2023, o presidente Ali escutou reclamações de fazendeiros incomodados com a falta de informações. Um deles afirmou ter conhecimento apenas do que chegou a ele via redes sociais, quando uma escavadeira já ameaçava sua roça.

Ali respondeu que uma equipe técnica seria enviada para avaliar a situação dos afetados, e que moradores que precisassem ser realocados receberiam assistência. Desde então, o governo divulgou alguns eventos de consulta pública em Kuru Kururu com a presença de autoridades do ministério da Habitação.

A renda per capita anual da nação com tamanho do estado de Roraima e menos de 1 milhão de habitantes saltou de US$ 6.800 (R$ 34 mil, na cotação atual) para cerca de US$ 20 mil (R$ 99 mil) desde que o petróleo, descoberto em 2015, começou a jorrar em 2019, segundo dados do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.

O último trecho do precário trajeto até Silica City é exemplo, contudo, de como a infraestrutura é um dos grandes gargalos de um país que tenta extrair desenvolvimento do setor de petróleo e gás ao mesmo tempo em que diz priorizar o combate à crise climática.

A capital, Georgetown, fica abaixo do nível do mar, o que resulta em constantes alagamentos. A cidade é cortada por fossos e pequenos canais a céu aberto de água parada e lixo entre as casas e à margem das ruas. O problema, com tendência a piorar diante da expectativa de aumento do nível do mar, é um dos argumentos para a construção do novo centro urbano, cerca de 40 km ao sul.

Metade do caminho até lá, por outro lado, recebeu uma nova rodovia de quatro faixas, cujo objetivo final é aliviar o tráfego da capital até o Aeroporto Internacional Cheddi Jagan e se conectar à rodovia que leva dali até Linden, segunda maior cidade do país, cerca de 50 km mais ao sul do aeroporto.

Tem origem em Linden, inclusive, a estrada que segue até Lethem, na fronteira com o município brasileiro de Bonfim, em Roraima. Seu trecho final faz parte do Essequibo, região que representa dois terços da Guiana e é reivindicada pela Venezuela, em um imbróglio ressuscitado pela ditadura de Nicolás Maduro no final do ano passado.

A pavimentação dessa estrada é um dos objetivos de uma das rotas de integração do continente propostas pelo Ministério do Planejamento e levada à reunião da Caricom, da qual o Brasil participou.

Nascida do zero, Silica City ficará no meio do caminho dessa rota, bem localizada: próxima ao aeroporto e longe dos desafios urbanos da capital. Ainda há muito para saber se o plano, de modo semelhante ao país, vai esbarrar nos seus limites e carências ou conseguir cumprir suas ambições —e a que custo.

Fonte: Folha de São Paulo

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