De saia plissada colorida, maquiagem e cabelos bem arrumados, uma senhora me aborda enquanto almoço no refeitório de Guantánamo. Apoiada em um andador, ela me convida para tomar um café da tarde na casa dela “quando tiver um tempinho”, entregando sua latinidade. Era cubana, e falava como uma anfitriã.
Quando agradeço, mas explico que estava prestes a ir embora, ela não esconde a decepção. Captando as entrelinhas, pergunto o que ela faz para se divertir por ali. “Antes da Covid era mais animado, agora…”, diz, com um sorriso resignado.
Envolta em segredos e denúncias que mancham a reputação americana até hoje, surpreende o quão entediante parece ser a vida em Guantánamo.
A famosa prisão fica de frente para o mar em uma região afastada; o acesso é interditado por postos de controle. A vida no resto da base transcorre como se houvesse um pacto coletivo para ignorar um vizinho desagradável.
Foi assim que me peguei fazendo a posição do cachorro ao lado de um advogado de um dos acusados pelos ataques do 11 de Setembro durante uma aula de ioga na academia da base. Enquanto a professora pedia para respirar e “deixar os pensamentos do lado de fora”, era impossível para mim não sentir um certo estranhamento.
Foi também assim que me senti quando me vi tomando uma cerveja ao som de reggaeton com um advogado militar de KSM, apontado como o cérebro por trás dos atentados, ou cumprimentando estudantes de direito –na base para acompanhar as audiências– em trajes de banho a caminho de fazer um passeio de barco em um dia ensolarado. Turismo.
Algumas horas depois, avisto o juiz do caso, o coronel da Força Aérea Matthew MacCaull, de camiseta, bermuda e fone de ouvido, correndo pela principal avenida da base. No meu último dia, enquanto trabalhava em uma das mesas de fora da biblioteca, ouço o início de “Ficção Americana”, indicado ao Oscar de melhor Filme, sendo projetado em um cinema a céu aberto no quarteirão em frente.
Fora isso, não tem muito o que fazer em Guantánamo. Um funcionário do governo me diz que, se pudesse, iria à cidade cubana mais próxima todos os dias –há muitos anos, antes de a relação entre os países ruir, isso era comum, ele me conta. “Off the records”, claro.
Algumas dezenas dos habitantes originais da ilha ainda moram na base naval, estabelecida em 1903. Eles já estavam lá antes do fechamento da fronteira, após a revolução liderada por Fidel Castro, e resolveram continuar. Seus filhos, por serem nascidos em uma zona militar, têm cidadania dos EUA e hoje vivem no continente.
Um acordo entre os países, que só pode ser desfeito consensualmente, prevê o pagamento anual de US$ 4.085 a Havana pelo território.
A cubana que abordou a reportagem mora em uma das regiões residenciais de Guantánamo, um bairro de casas térreas e portas coloridas que remetem aos anos 1950 –em frente a uma delas havia inclusive um Fusca. Nas proximidades há um centro comunitário cubano. Outros moradores, pela idade avançada, vivem em um asilo, próximo do hospital naval.
Muitos filipinos e jamaicanos também vivem em Guantánamo. Trabalham como caixas de supermercado, garçons e faxineiros. Recrutados em seus países para contratos temporários, ganham algo como US$ 400 (R$ 2.000) por semana, a depender da vaga. Ainda assim, falta pessoal, e é comum terem dois e até três empregos ao mesmo tempo.
O resto dos 6.000 moradores da base são militares e civis americanos que trabalham no Departamento de Defesa. Os que vão sozinhos moram em prédios, e quem vai com a família mora em sobrados que parecem de subúrbio americano, distribuídos em pequenos bairros dispersos. Quanto mais alta a patente, melhor a residência. Mulheres com bebês circulam pela base. Há uma escola para os filhos de militares em idade escolar.
Durante o dia, há poucas pessoas nas ruas, até por causa do calor. Há uma estrada principal, ao redor da qual ficam comércios –um supermercado que também faz as vezes de loja de departamento, um hotel, um McDonald’s “old school”, sem totem para fazer os pedidos. Há ainda quadras esportivas, piscinas, academia, tudo de uso livre.
As opções noturnas são limitadas. São poucos restaurantes, que servem basicamente lanches, pizza, tacos e burritos. A exceção, não exatamente positiva, foi o restaurante supostamente chique, onde fui a convite dos poucos jornalistas americanos que ainda acompanham o caso de perto. Estavam de olho em uma mesa próxima, onde o time de defesa de KSM comemorava o aniversário de um dos seus membros.
Ao lado, há um bar-balada: um quiosque vende bebidas, uma pista a céu aberto oferece instrutores de dança com a playlist que vai de salsa a rock. Há algumas mesas de metal. Como todos os lugares em que fui, também estava praticamente vazio.
O respiro são as vendinhas de comida improvisadas pelos trabalhadores estrangeiros. Às sextas, por exemplo, jamaicanos vendem pratos típicos em uma tenda simples ao lado de uma estrada —ao som de reggae.
Enquanto faço o trajeto de volta no barco que leva até o terminal aéreo, sinto que estou voltando à vida real depois de dias em um lugar suspenso no tempo. Estamos no Caribe, mas tudo é meio desbotado. Estamos numa base dos EUA, mas quase tudo foge à estética polida americana.
Sair de Guantánamo é um alívio.