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Como a CIA secretamente ajuda a Ucrânia a combater Putin – 28/02/2024 – Mundo

Aninhada em uma densa floresta, a base militar ucraniana parece abandonada e destruída, seu centro de comando uma carcaça queimada, vítima de um ataque de mísseis russos no início da guerra.

Mas isso é o que se vê acima do solo.

Não muito longe, uma passagem discreta desce para um bunker subterrâneo onde equipes de soldados ucranianos rastreiam satélites espiões russos e escutam conversas entre comandantes russos. Em uma tela, uma linha vermelha segue a rota de um drone explosivo passando pelas defesas aéreas russas de um ponto no centro da Ucrânia até um alvo na cidade russa de Rostov.

O bunker subterrâneo, construído para substituir o centro de comando destruído nos meses após a invasão feita pela Rússia, é um centro nervoso secreto das Forças Armadas da Ucrânia.

Há também mais um segredo: A base é quase totalmente financiada e parcialmente equipada pela CIA. “110%”, disse o general Serhii Dvoretskii, um comandante de inteligência de alto escalão, em uma entrevista na base.

Agora entrando no terceiro ano de uma guerra que já ceifou centenas de milhares de vidas, a parceria de inteligência entre Estados Unidos e Ucrânia é um pilar da capacidade de Kiev de se defender. A CIA e outras agências de inteligência americanas fornecem informações para ataques de mísseis direcionados, rastreiam movimentos de tropas russas e ajudam a apoiar redes de espionagem.

Mas a parceria não é uma criação de guerra, nem a Ucrânia é a única beneficiária. Ela se enraizou há uma década, desenvolvendo-se aos trancos e barrancos sob três presidentes dos EUA muito diferentes, impulsionada por indivíduos-chave que frequentemente assumiram riscos ousados. Ela transformou a Ucrânia, cujas agências de inteligência eram vistas como totalmente comprometidas pela Rússia, em uma das parceiras de inteligência mais importantes de Washington contra o Kremlin na atualidade.

O posto de escuta na floresta ucraniana faz parte de uma rede de bases espiãs apoiadas pela CIA construídas nos últimos oito anos, que inclui 12 locais secretos ao longo da fronteira russa. Antes da guerra, os ucranianos provaram seu valor aos americanos coletando interceptações que ajudaram a provar o envolvimento da Rússia no abate de um avião comercial em 2014, o voo 17 da Malaysia Airlines. Os ucranianos também ajudaram os americanos a perseguir os operativos russos que interferiram nas eleições presidenciais dos EUA em 2016.

Por volta de 2016, a CIA começou a treinar uma força de comando ucraniana de elite, a Unidade 2245, que capturava drones e equipamentos de comunicação russos para que técnicos da CIA pudessem desmontá-los e quebrar os sistemas de criptografia de Moscou. Um dos membros da unidade era Kirilo Budanov, agora o general que lidera a inteligência militar da Ucrânia.

E a CIA também ajudou a treinar uma nova geração de espiões ucranianos que operavam dentro da Rússia, por toda a Europa e em Cuba e outros lugares onde os russos têm grande presença.

A relação é tão enraizada que os oficiais da CIA permaneceram em uma localização remota no oeste da Ucrânia quando a administração Biden retirou o pessoal dos EUA nas semanas antes da invasão russa em fevereiro de 2022. Durante a invasão, os oficiais transmitiram informações críticas, incluindo onde a Rússia planejava ataques e quais sistemas de armas eles usariam.

“Sem eles, não haveria como resistirmos aos russos, ou vencê-los”, disse Ivan Bakanov, que na época era chefe da agência de inteligência doméstica da Ucrânia, o SBU.

Os detalhes desta parceria de inteligência, muitos dos quais estão sendo divulgados pelo The New York Times pela primeira vez, têm sido um segredo bem guardado por uma década.

Em mais de 200 entrevistas, autoridades atuais e antigas na Ucrânia, nos EUA e na Europa descreveram uma parceria que quase naufragou devido à desconfiança mútua antes de se expandir constantemente, transformando a Ucrânia em um centro de coleta de inteligência que interceptava mais comunicações russas do que a estação da CIA em Kiev inicialmente conseguia lidar. Muitas das autoridades falaram sob condição de anonimato para discutir assuntos sensíveis de inteligência e diplomacia.

Agora essas redes de inteligência são mais importantes do que nunca, já que a Rússia está na ofensiva e a Ucrânia está mais dependente de sabotagem e ataques de mísseis de longo alcance que exigem espiões muito atrás das linhas inimigas. E elas estão cada vez mais em risco: Se os republicanos no Congresso encerrarem o financiamento militar para Kiev, a CIA pode ter que reduzir suas operações.

Para tentar tranquilizar os líderes ucranianos, William Burns, diretor da CIA, fez uma viagem secreta à Ucrânia na quinta-feira (22), sua décima visita desde a invasão.

Desde o início, um adversário em comum —o presidente russo, Vladimir Putin— uniu a CIA e seus parceiros ucranianos. Obcecado com o suposto risco de “perder” a Ucrânia para o Ocidente, Putin interferia regularmente no sistema político ucraniano, escolhendo a dedo líderes que acreditava que manteriam a Ucrânia na órbita da Rússia. Mas a cada vez isso se voltava contra ele, levando os manifestantes às ruas.

Putin há muito culpa as agências de inteligência ocidentais por manipular Kiev e semear sentimentos anti-Rússia na Ucrânia. No fim de 2021, segundo um alto funcionário europeu, Putin estava considerando lançar sua invasão em larga escala quando se encontrou com o chefe de um dos principais serviços de espionagem da Rússia, que lhe disse que a CIA, junto com o MI6 do Reino Unido, estava controlando a Ucrânia e transformando-a em uma cabeça de ponte para operações contra Moscou.

Mas a investigação do Times descobriu que Putin e seus conselheiros interpretaram erroneamente uma dinâmica fundamental. A CIA não forçou sua entrada na Ucrânia. Os funcionários dos EUA frequentemente relutavam em se envolver totalmente, temerosos de que os ucranianos não pudessem ser confiáveis e preocupados em não provocar o Kremlin.

No entanto, um círculo restrito de oficiais de inteligência ucranianos se aproximou da CIA e gradualmente se tornou vital para os americanos. Em 2015, o general Valerii Kondratiuk, então chefe de inteligência militar da Ucrânia, chegou a uma reunião com o vice-chefe do escritório da CIA e, sem aviso prévio, entregou um monte de arquivos ultrassecretos.

Essa primeira leva continha segredos sobre a frota do norte da Marinha russa, incluindo informações detalhadas sobre os últimos projetos de submarinos nucleares. Em pouco tempo, equipes de oficiais da CIA estavam saindo regularmente de seu escritório com mochilas cheias de documentos.

“Entendemos que precisávamos criar as condições de confiança”, disse Kondratiuk.

À medida que a parceria se aprofundava após 2016, os ucranianos ficaram impacientes com o que consideravam uma cautela excessiva de Washington e começaram a realizar assassinatos e outras operações letais, que violavam os termos com os quais a Casa Branca pensava que os ucranianos haviam concordado. Furiosos, funcionários em Washington ameaçaram cortar o apoio, mas nunca o fizeram.

Esta é a história não contada de como tudo aconteceu.

Um Começo Cauteloso

A parceria da CIA na Ucrânia remonta a duas chamadas telefônicas na noite de 24 de fevereiro de 2014, oito anos antes da invasão em larga escala da Rússia. Milhões de ucranianos haviam acabado de derrubar o governo pró-Kremlin do país e o presidente, Viktor Ianukovich, e seus chefes de espionagem haviam fugido para a Rússia. No tumulto, um frágil governo pró-Ocidente assumiu rapidamente o poder.

O novo chefe de espionagem do governo, Valentin Nalivaichenko, chegou à sede da agência de inteligência doméstica e encontrou uma pilha de documentos em chamas no pátio. Lá dentro, muitos dos computadores haviam sido apagados ou estavam infectados com um malware [programa feito para danificar máquinas] russo. “Estava vazio. Sem luzes. Sem liderança.”, disse Nalivaichenko à época.

Ele foi a um escritório e ligou para o chefe da estação da CIA e o chefe local do MI6. Era quase meia-noite, mas ele os convocou para o prédio, pediu ajuda para reconstruir a agência do zero e propôs uma parceria trilateral. “Foi assim que tudo começou”, disse Nalivaichenko.

A situação rapidamente se tornou mais perigosa. Putin tomou a Crimeia. Seus agentes fomentaram rebeliões separatistas que se tornariam uma guerra no leste do país. A Ucrânia estava em pé de guerra, e Nalivaichenko apelou à CIA por imagens aéreas e outras inteligências para ajudar a defender seu território.

Com a violência escalando, um avião do governo dos EUA sem identificação pousou em um aeroporto em Kiev trazendo John Brennan, então diretor da CIA. Ele disse a Nalivaichenko que a CIA estava interessada em desenvolver uma relação, mas apenas em um ritmo com o qual a agência de espionagem se sentisse confortável, segundo autoridades dos EUA e da Ucrânia.

Para a CIA, a questão desconhecida era por quanto tempo Nalivaichenko e o governo pró-Ocidente permaneceriam. Os ucranianos tinham que provar que podiam fornecer inteligência de valor aos americanos. Eles também precisavam remover espiões russos; a agência de espionagem doméstica, o SBU, estava infestada deles.

O resultado foi um delicado exercício de equilibrismo. A CIA deveria fortalecer as agências de inteligência da Ucrânia sem provocar os russos. As linhas vermelhas nunca foram precisamente claras, o que criou uma tensão persistente na parceria.

Em Kiev, Nalivaichenko escolheu um antigo assessor, Kondratiuk, para servir como chefe de contra-inteligência, e eles criaram uma nova unidade paramilitar que foi implantada atrás das linhas inimigas para realizar operações e reunir inteligência que a CIA ou o MI6 não forneceriam a eles.

Conhecida como a Quinta Diretoria, esta unidade seria preenchida por oficiais nascidos após a independência da Ucrânia. “Não tinham conexão com a Rússia”, disse Kondratiuk. “Eles nem sabiam o que era a União Soviética.” Em julho de 2014, o voo 17 da Malaysia Airlines, que saiu de Amsterdã rumo a Kuala Lumpur, na Malásia, explodiu no ar e caiu no leste da Ucrânia, matando quase 300 passageiros e tripulantes. A Quinta Diretoria produziu interceptações telefônicas e outras evidências horas após o acidente que rapidamente colocaram a responsabilidade nos separatistas apoiados pela Rússia.

A CIA ficou impressionada e fez seu primeiro compromisso significativo ao fornecer equipamentos de comunicação segura e treinamento especializado.

Contornando Trump

A eleição de Trump em novembro de 2016 deixou os ucranianos e seus parceiros da CIA apreensivos.

Trump elogiou Putin e minimizou o papel da Rússia na interferência eleitoral. Ele desconfiava da Ucrânia e mais tarde tentou pressionar seu presidente, Volodimir Zelenski, a investigar seu rival democrata, Biden.

Mas, independentemente do que Trump disse e fez, seu governo muitas vezes seguiu em outra direção. Isso porque Trump colocou oficiais linha-dura em posições-chave, incluindo Mike Pompeo como diretor da CIA e John Bolton como conselheiro de segurança nacional. Eles visitaram Kiev para enfatizar seu total apoio à parceria secreta, que se expandiu para incluir mais programas de treinamento especializado e a construção de bases secretas adicionais.

Impedir a Rússia de interferir em futuras eleições nos EUA era uma prioridade da CIA durante este período, e funcionários de inteligência ucranianos e americanos uniram forças para investigar os sistemas de computadores das agências de inteligência da Rússia para identificar agentes que tentavam manipular os eleitores.

A relação foi tão bem-sucedida que a CIA queria replicá-la com outros serviços de inteligência europeus que compartilhavam o foco em combater a Rússia.

O chefe da Casa da Rússia, o departamento da CIA que supervisiona operações contra Moscou, organizou uma reunião secreta em Haia. Lá, representantes da CIA, do MI6 da Grã-Bretanha, do HUR (serviço ucraniano), do serviço holandês (um aliado crítico de inteligência para os americanos) e de outras agências concordaram em começar a se reunir para compartilhar dados sobre a Rússia.

Marcha para a Guerra

Em março de 2021, o Exército russo começou a concentrar tropas ao longo da fronteira com a Ucrânia. Conforme os meses passavam e mais militares cercavam o país, a questão era se Putin estava fazendo um blefe ou se preparando para a guerra.

Em novembro daquele ano, a CIA e o MI6 entregaram uma mensagem unificada a seus parceiros ucranianos: a Rússia estava se preparando para uma invasão em grande escala para decapitar o governo e instalar um fantoche em Kiev que faria a vontade do Kremlin.

As agências de inteligência dos EUA e da Grã-Bretanha tinham interceptações às quais as agências de inteligência ucranianas não tinham acesso, segundo autoridades dos EUA. A nova inteligência listava os nomes de funcionários ucranianos que os russos planejavam matar ou capturar, bem como os ucranianos que o Kremlin esperava instalar no poder.

Zelenski e alguns de seus principais conselheiros pareciam não convencidos, mesmo depois que Burns, o diretor da CIA, correu para Kiev em janeiro de 2022 para informá-los.

À medida que a invasão russa se aproximava, oficiais da CIA e do MI6 fizeram visitas finais em Kiev com seus pares ucranianos. Um dos agentes do MI6 se emocionou na frente dos ucranianos, preocupado que os russos os matassem.

A pedido de Burns, um pequeno grupo de funcionários da CIA foi isento da evacuação mais ampla dos EUA e foi realocado para um complexo hoteleiro no oeste da Ucrânia. Eles não queriam abandonar seus parceiros.

Sem um Fim

Depois que Putin lançou a invasão em 24 de fevereiro de 2022, os funcionários da CIA no hotel eram a única presença do governo dos EUA em solo ucraniano. Todos os dias no hotel, eles se encontravam com seus contatos locais para passar informações. As restrições antigas foram suspensas, e a Casa Branca de Biden autorizou as agências de espionagem a fornecer suporte de inteligência para operações letais contra as forças russas em solo ucraniano.

Frequentemente, os briefings da CIA continham detalhes chocantes de tão específicos. Em 3 de março de 2022, o oitavo dia da guerra, a equipe da CIA deu uma visão precisa dos planos russos para as próximas duas semanas. Os russos abririam um corredor humanitário para fora da cidade sitiada de Mariupol no mesmo dia e, em seguida, abririam fogo contra os ucranianos que o utilizassem.

Os russos planejavam cercar a cidade portuária estratégica de Odessa, de acordo com a CIA, mas uma tempestade atrasou o ataque, e os russos nunca tomaram a cidade. Então, em 10 de março, os russos pretendiam bombardear seis cidades ucranianas e já haviam inserido coordenadas em mísseis de cruzeiro para esses ataques.

Os russos também estavam tentando assassinar altos funcionários ucranianos, incluindo Zelenski. Em pelo menos um caso, a CIA compartilhou inteligência com a agência doméstica da Ucrânia que ajudou a interromper um plano contra o presidente, segundo um alto funcionário ucraniano.

Quando o ataque russo a Kiev estagnou, o chefe do escritório da CIA comemorou e disse a seus colegas ucranianos que eles estavam “dando socos nos russos”, segundo um ucraniano que estava na sala.

Dentro de semanas, a CIA havia retornado a Kiev, e a agência enviou dezenas de novos agentes para ajudar os ucranianos. Um alto funcionário dos EUA disse sobre a presença considerável da CIA: “Eles estão puxando os gatilhos? Não. Estão ajudando com o direcionamento? Absolutamente.”

A pergunta que alguns homens da inteligência ucraniana estão fazendo agora a seus homólogos americanos — enquanto os republicanos na Câmara dos Deputados americana consideram cortar bilhões de dólares em ajuda — é se a CIA os abandonará. “Aconteceu no Afeganistão antes e agora vai acontecer na Ucrânia”, disse um agente sênior ucraniano.

Referindo-se à visita de Burns a Kiev na semana passada, um agente da CIA disse: “Demonstramos um compromisso claro com a Ucrânia ao longo de muitos anos e esta visita foi mais um sinal forte de que o compromisso dos EUA continuará”.

Fonte: Folha de São Paulo

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