“Não sejam consumidos pela raiva”, disse o presidente Joe Biden em sua visita a Israel logo após os ataques terroristas perpetrados pelo Hamas. “Depois do 11 de Setembro, estávamos enfurecidos nos Estados Unidos. Embora tenhamos buscado justiça e alcançado justiça, também cometemos erros.”
Guantánamo, mancha da qual os americanos não conseguem se livrar, é uma síntese das palavras de Biden. Ali se desenrola o embate entre o direito dos EUA à justiça pelo atentado sofrido e o direito à justiça das pessoas que sofreram a reação dos EUA.
A Folha esteve na base militar americana, localizada no sul de Cuba, de segunda-feira (19) a sábado (24). Lá, acompanhou o depoimento do psicólogo James Mitchell, apontado como uma das mentes por trás das chamadas “técnicas avançadas de interrogatório” usadas pela CIA em prisões secretas pelo mundo, conhecidas como “black sites”, nos primeiros anos da Guerra ao Terror iniciada após o 11/9.
O termo técnico, carregado de eufemismo, engloba práticas como waterboarding (afogamento simulado), walling (bater a cabeça de uma pessoa contra a parede) e privação de sono por dias. Alguns prisioneiros foram submetidos também a “hidratação retal” —inserção de líquidos pelo ânus por meio de um tubo, caracterizada como estupro por advogados.
As práticas foram banidas por Barack Obama (2009-2017), que admitiu se tratar de tortura. O ex-presidente tentou fechar a prisão durante seu mandato, mas fracassou. Donald Trump (2017-2021) não continuou os esforços, e chegou a dizer que liberaria novamente o waterboarding; depois, voltou atrás. Biden retomou a defesa do fim de Guantánamo, mas não deu à pauta a mesma prioridade que Obama.
O tribunal onde há 12 anos se arrastam os processos contra os acusados dos atentados é um galpão sem janelas rodeado por trailers que fazem as vezes de escritório, banheiro e celas. Alambrados cobertos por um tecido preto com espirais de arame farpado no topo isolam o complexo.
O espaço reservado aos espectadores é apartado do resto da corte por vidros à prova de som para que a discussão não seja ouvida em tempo real. Alto-falantes reproduzem o que acontece do outro lado com um pequeno atraso, para dar aos censores tempo hábil de cortar a transmissão caso julguem que um tópico confidencial foi abordado. Uma luz vermelha semelhante a uma sirene de polícia pisca na bancada ao lado do juiz quando isso ocorre.
Mitchell não está no banco dos réus, pois um acordo com a CIA o protege de persecução penal. Seu depoimento é relevante apenas como parte da batalha para determinar se as confissões voluntárias feitas a uma “equipe de limpeza” do FBI em 2007 são admissíveis —o termo se refere a obter depoimentos sem a “sujeira” da tortura.
Há quatro acusados, cada um com sua própria equipe de defesa composta por advogados civis e militares. O principal é o paquistanês Khalid Sheikh Mohammed, 58, também conhecido como KSM e apontado como o cérebro do plano terrorista que matou quase 3.000 pessoas.
Os outros são Ammar al-Baluchi, 46, sobrinho de KSM, Walid bin Attash, 45, e Mustafa al Hawsawi, 55. Nenhum deles participou da comissão militar na última semana, em um protesto contra mudanças recentes nos procedimentos de segurança da prisão. A Procuradoria pede que todos sejam condenados à morte.
Até o ano passado, havia um quinto réu, Ramzi bin al Shibh, 51, retirado do caso após uma junta médica declará-lo mentalmente incapaz de ir a julgamento. Segundo os avaliadores, ele sofre de estresse pós-traumático “com características psicóticas secundárias” e um “transtorno delirante”. Advogados atribuem o diagnóstico à tortura sofrida. Seu destino agora é incerto. Enquanto isso, permanece em Guantánamo.
As equipes de defesa argumentam que, apesar de não terem sido feitas sob tortura, as declarações dadas ao FBI devem ser descartadas porque os acusados foram condicionados em anos anteriores a responder o que os interrogadores queriam ouvir. É tarefa da Procuradoria provar o contrário.
Essa disputa é o principal obstáculo para o julgamento. O primeiro juiz do caso chegou a considerar as confissões inválidas como forma de punir o governo por não divulgar informações; um sucessor voltou atrás. Existe a expectativa de que o atual magistrado, o coronel da Força Aérea Matthew McCall, tome uma decisão antes de se aposentar neste ano.
Ao longo de seu depoimento, Mitchell, um homem de barba e cabelos brancos que se rebelam sobre sua testa sempre franzida, tenta justificar o tratamento brutal dado aos prisioneiros. Afirma que foi uma resposta à urgência para obter informações sobre uma temida segunda onda de ataques pela Al Qaeda, no contexto de uma CIA desesperada pela falha em 11 de Setembro.
“[Dick] Cheney disse que faríamos tudo o que fosse necessário para evitar que algo do tipo tivesse 1% de chance de acontecer”, declara, em referência ao vice-presidente durante o governo de George W. Bush (2001-2009). Mas, em vez de um vale-tudo, Mitchell insiste na defesa do programa como um processo burocrático, cirúrgico e respaldado por evidências científicas.
Na primeira fase, ele diz que um plano de interrogatório era elaborado para desmontar a “posição de resistência” dos detentos, incutindo um “medo condicionado” —associar o walling, por exemplo, à toalha colocada em volta do pescoço nessa hora, para que a mera visão do tecido já provocasse uma sensação de terror semelhante à causada pelas pancadas contra a parede.
Quando esse objetivo era alcançado, passava-se para a segunda etapa: obter informações sem o uso da tortura, mas recorrendo quando preciso a esses objetos e a ameaças de retorno aos “tempos difíceis”. Esse período era chamado de “debriefing”.
Mitchell afirma que tudo o que fez foi autorizado previamente pelo Departamento de Justiça. Por exemplo: antes de ameaçar cortar a garganta do filho de KSM, consultou Washington se isso seria lícito. A resposta é ilustrativa: advogados dizem que sim, desde que a frase fosse formulada de modo condicional, na linha: “se houver um novo ataque que mate crianças americanas, e se eu descobrir que você tinha informações sobre isso, vou cortar a garganta do seu filho”.
Olhando em retrospecto, o psicólogo diz considerar a ameaça “desagradável”, mas afirma não se arrepender porque fez o que achou necessário para proteger seu país.
Em um dos intervalos da audiência, o tenente da Marinha William Xu, que integra a defesa de KSM, pergunta em uma rodinha formada por estudantes de direito de Harvard e Yale —jovens demais para terem uma memória clara do 11 de Setembro— se eles veem Mitchell como um vilão ou uma espécie de anti-herói incompreendido.
É consenso entre alunos das universidades de elite que as “técnicas avançadas” eram tortura, mas isso não leva automaticamente a uma condenação do psicólogo. Uma estudante afirma que ele tem razão quando diz que KSM não pensou duas vezes antes de matar filhos de americanos; outra é menos compreensiva, mas pondera que, em sua visão, o contexto na época era de muita pressão.
Questionado pela reportagem sobre como é defender um acusado do 11 de Setembro, um dos advogados militares de KSM diz que está cumprindo o que lhe foi designado. Ele fala em condição de anonimato enquanto bebe uma cerveja em um bar de Guantánamo, com direito a DJ e instrutor de dança. Assim como seus colegas, que não discutem se KSM é culpado ou não, enfatiza que o que está em jogo é como o terrorista foi tratado pelo governo americano.
Nos seis dias em que a reportagem esteve em Guantánamo, o papel dos quatro acusados nos atentados foi citado apenas por Mitchell e pela estudante de direito. Nas demais conversas, seja dentro ou fora da corte, o tema predominante foi o programa da CIA. A sensação é a de que quem está enfrentando julgamento são os EUA.
Uma saída para o imbróglio é um acordo entre as defesas e a Procuradoria, em que os réus se declarariam culpados em troca de prisão perpétua. Negociações ocorreram durante o governo Joe Biden, mas foram abandonadas há alguns meses, após Washington se recusar a aceitar as condições colocadas pelos acusados, como tratamento para reabilitação de ex-torturados.
Se as confissões forem declaradas inadmissíveis, a pressão por essa solução vai crescer. Há, no entanto, uma preocupação política: quem quer ser o presidente cujo governo fez um acerto com homens acusados de tramar o 11 de Setembro? Advogados envolvidos no caso são cautelosos, mas aventam que as negociações podem ser retomadas após a eleição de novembro, Biden vencendo ou perdendo o pleito. A ver.