Em coletiva em Adis Abeba, onde participou de reunião da União Africana, o presidente Lula (PT) comparou o massacre em curso na Faixa de Gaza ao Holocausto. A analogia, além de historicamente equivocada, sempre é recebida com repúdio quando utilizada em contextos diversos.
Por que o presidente, após já ter chamado a ação israelense de “genocídio” em sua fala, retomou o assunto para evocar a barbárie nazista contra judeus? Pode até ter sido mais uma gafe de improviso, mas não faz diferença. Na análise política, as motivações subjetivas pesam menos que as consequências tangíveis.
As implicações da comparação feita por Lula podem ser lidas em duas dimensões. Internamente, o presidente consolida o apoio de setores à esquerda, para os quais a causa palestina é elemento central.
Não é de hoje que, no Brasil, certos temas internacionais transbordam para o debate público e organizam lealdades políticas. E nenhum assunto desperta tantas paixões quanto o conflito israelo-palestino, cujos posicionamentos refletem, quase que perfeitamente, as divisões de uma direita pró-Israel e de uma esquerda pró-Palestina, com graus variados de radicalismo e permissividade com seu próprio lado.
Lula tem sido alvo de fogo amigo dos que discordam de suas políticas econômicas e de suas reiteradas críticas a pautas identitárias. Monopolizada pelo Executivo, a política externa é um dos campos favoritos do petista para fidelizar sua base.
Naturalmente, os ganhos do ativismo diplomático também cruzam fronteiras. As duras críticas a Israel são, mais que nunca, uma maneira de o Brasil se afirmar como liderança do chamado Sul Global, o grupo dos países emergentes.
Este é um elemento novo da política externa brasileira. Em sentido contrário, durante sua primeira passagem pela Presidência, Lula usou a equidistância, o desejo de mediação de conflitos e o comedimento da linguagem diplomática como instrumentos de protagonismo.
Logo após os atentados de 7 de outubro de 2023, Lula voltou a apostar na equidistância. Condenou abertamente o terrorismo do Hamas e trabalhou por um cessar-fogo diante da escalada de mortes palestinas em Gaza. A resolução brasileira na ONU foi lamentavelmente vetada pelos americanos.
Aos poucos, ficou evidente que o exercício do protagonismo brasileiro dependeria de posicionamentos claros. Diante do agravamento da violência em Gaza, Lula endureceu suas críticas às ações militares israelenses, chegando a chamá-las de “terrorismo de Estado”. No início do ano, alinhou-se à iniciativa sul-africana de acusar Israel do crime de genocídio junto à Corte Internacional de Justiça.
A comparação com o Holocausto, nesse sentido, não surpreende. Mas, ao evocar o episódio mais doloroso da história judaica, ainda que de passagem, Lula agride muito mais do que aqueles que são seu objeto de repúdio.
O presidente mira nos inúmeros crimes de governo israelense e acaba acertando todos os judeus, alguns dos quais historicamente de esquerda, simpáticos a Lula e ao PT e defensores da causa palestina. De quebra, adiciona mais um motivo à antipatia de muitos evangélicos ao governo e atiça, por tabela, o bolsonarismo, às vésperas de uma manifestação em defesa do ex-presidente.
Do ponto de vista estratégico, o saldo ainda é incerto. Pode ser que a esquerda esqueça as recentes rusgas com o governo. Pode ser que lideranças, ativistas e veículos de imprensa do Sul Global destaquem a coragem de Lula de fazer uma crítica veemente às ações israelenses em Gaza.
Mas o Brasil pode sair enfraquecido. E nem me refiro à reação imediata Binyamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, que convocou seu embaixador para consultas, ou o mal-estar que a fala poderá causar entre aliados ocidentais. Isso é do jogo da diplomacia.
O que mais me preocupa é outra coisa. Lula não apoia antissemitismo ou terrorismo, mas já tem gente tentando fazer essas associações. Isso é um prato cheio para a oposição –e um fardo desnecessário para um presidente que acaba de entrar em seu segundo ano e que possui muitos desafios pela frente.