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Livro mistura história e ficção para dissecar Espanha fascista após guerra civil – 06/02/2024 – Mundo

A Guerra Civil Espanhola acabou em abril de 1939, quando a direita de Francisco Franco tomou em Madri os últimos focos da resistência democrática e republicana. Mas o romance de Francisco Umbral, “Madri 1940: Memórias de um jovem fascista”, traduzido agora pela editora Carambaia, teria sua cronologia desencadeada só no ano seguinte.

Umbral, morto em 2007 aos 75 anos, mistura com tintas de grande vigor narrativo a história e a ficção de um momento em que a Espanha já não atraia mais tanto o foco das atenções. Franco fechara na Península Ibérica um mapa em que a direita já tinha o português Salazar. Mais a leste, no entanto, Hitler eclodia criminosamente a Segunda Guerra Mundial.

Os espanhóis, conformados com a pobreza econômica e com os valores de um ferrenho catolicismo conservador, tinham como saída esse regime político pendendo para o acanalhamento, que o romance descreve de forma verossímil, estilisticamente bela e profundamente cruel.

O jovem fascista ao qual o título se refere se chama Mariano Armijo. Desmobilizado dos combates, passa a exercer modestamente em Madri o emprego de jornalista, até que um de seus companheiros o promove a delator do regime. Um dedo-duro que não se via como um trivial franquista. Suas relações com o caudilho são de discreto desprezo. O grande personagem dessa Espanha obscura é, para ele, José Antonio Primo de Rivera, um dos cofundadores da falange. Os republicanos o capturaram e o fuzilaram em 1936, quando mal começava a guerra civil.

O conflito juntou grandes coligações, e os nacionalistas uniam falangistas, monarquistas e católicos. Esses grupos se enfrentaram discretamente entre si depois da vitória de 1939. Era um jeito discreto e possível de fazer política. É disso, em parte, que trata o romance de Umbral. Seus personagens não afrontam mais uma esquerda derrotada e periclitante no exílio.

O fascista Mariano é amante de Maria Prisca, mulher de meia-idade, “marquesa apócrifa de Arambol, cega de cocaína, eloquente de álcool, sedada de soníferos” e também namorada de um dos ministros de Franco. Ele a sustenta, dá-lhe criados e um automóvel com motorista e bandeira da Espanha tremulando no para-lama, e que a leva com Mariano a uma agenda de compromissos mundanos.

O fascista acredita que a delação é uma forma purificada de relação com a sociedade. Mas expurgar o país do comunismo enrustido é secundário quando ele se confronta com o presentear essa Espanha recôndita com uma nova gota do ideário que a aproximará mais um pouco do germanismo nacional-socialismo ou do renascimento romano que Mussolini a seu ver representa.

Outra mulher que circula entre os colchões do narrador se chama María de la Escolanía. Filha de um notário supostamente morto pelos republicanos, ela é bem mais jovem que Maria Prisca e divide seu frescor com um agricultor solteirão que a visita em Madri regularmente, trazendo-lhe sexo, frutas e legumes. Maria de la Escolanía é tísica. Perecerá com seu pulmão doente e seus sonhos mal formulados de um casamento com alguma maternidade.

Uma terceira mulher do fascista se chama provavelmente Filomena, e ele a possuiu numa relação desvergonhada de necrofilia. A jovem, muito parecida a um modelo do pintor francês Ingrès, havia sido executada pela manhã, quando Mariano usou seu extremo despudor para amá-la, como se purificasse essa forma de amor perverso, reforçando sua permissividade de macho. Em nenhum outro momento a sexualidade transparece tanto no romance como exercício autoritário do poder. O espanhol falangista também manda nos mortos, e nisso exalta seus sentimentos.

À luz do dia, nas ruas centrais, Madri era uma cidade povoada por homens uniformizados e por padres, que nas igrejas se aproximavam das beatas “belas e bem-cheirosas”, que se comportavam como vitoriosas de uma guerra cujo valor épico exageravam para uso próprio. Afinal, vivia-se num regime para o qual o cotidiano “era uma contínua Semana Santa”. Em momentos mais prosaicos as pessoas se encontravam nas mesas do Chicote, “um local anos 1920-30, entre cubista e proxeneta, que abrigava as melhores prostitutas da Espanha”. Nada que destoasse dos bondes apinhados de gente e das piedosas senhoras que administravam os livretos de racionamento de pão e faziam crer aos beneficiados que tudo era fruto de uma providência que misturava o generalíssimo Franco ao próprio Jesus Cristo.

Uma frase, por fim, que dá um fecho épico à mediocridade do fascismo. “As senhoras de viscose estampada e as porteiras faziam fila para tudo, mas nas filas ia sendo forjada a unidade franquista dos espanhóis. A fome e as guerras são uma coisa que une muito e acaba saudavelmente com a luta de classes.”

Fonte: Folha de São Paulo

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