Salvo por alguns geeks atentos às principais tendências de tecnologia, sou capaz de apostar que muitos de nós jamais tínhamos parado para pensar no potencial —e nos perigos— da inteligência artificial (IA) até ouvir o nome “ChatGPT” por todo o canto no ano passado.
A popularização do chatbot da OpenAI facilitou a vida de muita gente ao dar conta de tarefas simples, mas repetitivas. Mas quando começou a ser usada para gerar textos, imagens e até como ferramenta em crimes cibernéticos, gerou o questionamento: o quão preparada está nossa legislação para lidar com o tema?
O debate sobre a questão segue vago, e ninguém parece ter a resposta para questões cada vez mais comuns —se eu envio um comando para um chatbot com IA e ele cria uma ilustração nova baseada em trabalhos existentes, isso é plágio? Usar linhas de código geradas por ferramentas como o Gemini, da Google, implica em infração de propriedade intelectual se essas linhas forem baseadas em um produto registrado? E crimes? Como diferenciar a ação direta de pedir algo a uma IA do que ela própria entende ser necessário fazer para realizar a tarefa, mesmo que isso seja ilegal ou imoral?
Todos esses questionamentos também estão fervilhando na China, e um seminário realizado em Pequim na semana passada dá boas pistas de como um dos maiores mercados em potencial para essa tecnologia pretende tratar o tema.
O evento, organizado pelo Instituto de Pesquisa de Direito de Dados da Universidade Chinesa de Ciência Política e Direito, pretende estabelecer discussões acadêmicas que, no futuro, devem nortear a legislação do país a respeito do assunto.
Um dos oradores, Zhu Ge, foi uma das mentes por trás de uma polêmica decisão tomada pela Corte de Internet de Pequim, mais conhecida por sua sigla em inglês, BIC.
O caso poderia ter facilmente acontecido no Brasil: um homem identificado apenas pelo sobrenome Li usou uma IA generativa para criar uma imagem. Dias depois, ele notou que um blogueiro tinha usado o trabalho para ilustrar uma postagem em uma rede social e o processou, exigindo que seus direitos autorais fossem reconhecidos. Para a surpresa de todos, o tribunal concordou.
Os juízes responsáveis pelo caso entenderam que imagens geradas por IA atendem aos requisitos de originalidade necessários para registro de propriedade intelectual. Zhu Ge defendeu a decisão durante o seminário na semana passada, argumentando que a seleção de palavras de um “prompt” (como se chama uma orientação dada a máquina), as configurações de parâmetro e a seleção de imagens, todos processos que acompanham a geração de imagens por IA, demandam trabalho intelectual.
A discussão foi seguida por Wang Qian, um respeitado professor da Universidade de Ciência Política e Direito do Leste da China, que propôs um exercício dialético aos legisladores do país: que antes de determinar se o produto de uma IA era protegido, estabelecesse-se um marco legal definindo o que é uma criação segundo a lei de direitos autorais.
Ele propôs, por exemplo, que algo só receba essa classificação se a ferramenta criativa, IA ou não, for parte de um processo maior de tomada de decisão quanto aos elementos que compõem uma determinada obra.
Outros especialistas convidados ampliaram o debate, chegando inclusive a sugerir que a IA não fosse tratada na China como um caso de direito penal ou civil, e sim como uma questão de política pública. São todos argumentos fascinantes de uma sociedade que, até três anos atrás, nem sequer tinha um código civil.
Há alguns meses, escrevi neste espaço que o mundo talvez assistisse a desenvolvimentos paralelos e distintos da IA no Ocidente e na China; o primeiro focado em linguagem generativa e o segundo, em aplicações embargadas.
Será interessante também acompanhar de agora em diante como a abordagem legal da tecnologia nos dois campos influenciará legisladores mundo afora quando se trata da delicada tarefa de regular sem acabar com a inovação. Aguardemos.
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