O agricultor Pepe Gilabert já enfrenta a realidade de um futuro árido. O solo dos seus olivais tem consistência de sal, e este ano ele só deve colher 30% de seu volume normal de azeitonas.
No passado, suas plantações de oliveiras eram irrigadas unicamente com reservas de água subterrânea, mas essas reservas estão tão reduzidas que os agricultores de sua área da Andaluzia, na Espanha, hoje estão tendo que regar suas árvores com água encanada.
A seca forte e precoce deste ano significa que eles agora estão recebendo apenas metade da água de que necessitam. “É uma espiral diabólica”, disse Gilabert.
A seca e os incêndios que se alastraram pelo sul da Europa neste verão são os sinais mais evidentes de um problema complexo e arraigado de escassez de água que está se agravando com o avanço da mudança climática. “Nenhum país da Europa pode se considerar a salvo”, disse Xavier Leflaive, que dirige a equipe hídrica na diretoria ambiental da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
O número e a intensidade das estiagens vêm aumentando fortemente na UE (União Europeia), com as áreas e pessoas atingidas subindo quase 20% entre 1976 e 2006, segundo a Organização Meteorológica Mundial. A ONG World Resources Institute (WRI) previu em 2020 que a demanda global por água doce vai superar a oferta disponível em 56% até 2030 —uma diferença superior aos 40% previstos em 2009 pela consultoria McKinsey.
As tensões alcançaram tal ponto na França e Espanha que explodiram entre agricultores, os maiores consumidores de água do continente, e grupos ambientais. Parece provável que a situação se agrave ainda mais nos próximos anos devido a um misto de políticas públicas falhas, interesses arraigados e mudança climática acelerada.
Habituados de longa data a ter invernos frios e níveis altos e constantes de chuva, os responsáveis pelas políticas públicas europeias geralmente não se preocuparam muito com o abastecimento de água.
“A maioria dos regimes hídricos da Europa ainda são os que vigoravam nos tempos de abundância. Precisam ser reformados agora para refletir a escassez”, disse Leflaive. “São reformas muito complexas e que encerram dificuldades políticas, mas a meu ver são imprescindíveis.”
O impacto desse déficit de água é agudo para o setor agrícola. Mas também vai atingir os consumidores e outras indústrias, incluindo a produção energética, já que é preciso água para resfriar usinas elétricas nucleares e para gerar energia hidrelétrica.
E o problema não se limita aos países mais secos da Europa. Um misto de regulamentações locais, tubulações com vazamentos e condições meteorológicas extremas vem convertendo mesmo as partes mais úmidas da Europa, como Polônia ou Alemanha, em áreas de “estresse hídrico”. A Bélgica, país conhecido por seu tempo nublado, é o que sofre mais estresse hídrico na Europa, devido à sua alta densidade demográfica e infraestrutura deficiente, segundo índice do WRI publicado este mês.
Para Gilabert, em sua fazenda na Andaluzia, é simples: sem água, “não ganhamos dinheiro”.
A Europa está esquentando mais rapidamente que qualquer outro continente. Mas essa realidade vem sendo agravada por outras questões. A água produzida pelo degelo da neve dos Alpes, crucial para as reservas de água do continente, vem diminuindo. Para agravar o problema, os solos ressecados não retêm água suficiente das chuvas, e isso está causando a diminuição das reservas de água subterrânea.
“A dificuldade que enfrentamos é que o nível da água subterrânea está abaixando, porque ela é a fonte mais facilmente disponível. Nós a estamos usando muito mais rapidamente do que ela está sendo reposta”, disse Geoff Townsend, da empresa de serviços de água Ecolab.
Apesar das preocupações com a escassez de água, a distribuição é tratada com tanta displicência na UE que em média 25% da água potável é perdida em vazamentos em tubulações, segundo o órgão do setor EurEau.
Segundo dados do EurEau, Bulgária, Romênia e Itália lideram a lista dos países com mais vazamentos. Em Roma, por exemplo, 42% da água é perdida em uma rede de abastecimento de água que mais parece uma peneira e que em alguns bairros data do Império Romano. A terra seca e endurecida pode levar tubulações a se romper ou torcer, agravando os vazamentos.
No Reino Unido, um quinto da água fornecida é perdida todos os anos. As empresas de água Thames Water e Northumbrian Water disseram no ano passado que a onda de calor recorde do verão, com temperaturas que chegaram a 40°C, seguida pelo inverno frio, provocaram um aumento grande nos rompimentos de tubulações.
Mas críticos dizem que os problemas ligados ao clima foram exacerbados pelo subinvestimento crônico em infraestrutura por parte das empresas de serviços públicos. Para executivos do setor de água, vazamentos significam um desperdício não apenas de água, mas também de dinheiro. Apesar disso, identificar e eliminar vazamentos é difícil.
“Esses vazamentos todos são o que chamamos de ‘água que não gera renda’. Temos que produzir água potável. Isso encerra um custo. Você coloca água nos canos, e, se ela não chegar às torneiras, não recebe tarifas sobre ela”, comentou Danis Bonvillain, diretor de assuntos da UE do grupo de água e esgotos Veolia.
Mas Leflaive, da OCDE, disse que consertar cada vazamento não faz sentido financeiro e que uma taxa de mais ou menos 10% de perda de água é vista como o melhor cenário. “Para fazer mais que isso será preciso um investimento muito grande e provavelmente não valerá a pena.”
Como o abastecimento de água geralmente é administrado por uma colcha de retalhos de companhias locais e autoridades municipais, isso dificulta a ação de responsáveis por políticas públicas ao nível nacional ou da UE. Em toda a UE, mais de 78 mil empresas de dimensões diversas trabalham com a distribuição, reutilização e tratamento de água.
Marc Bierkens, professor de hidrologia na Universidade de Utrecht, na Holanda, disse que praticamente não há países que incentivem esforços para conservar água. A região de Flandres, na Bélgica, é uma das exceções; as residências pagam uma tarifa básica que aumenta se elas consomem um volume maior.
Tradicionalmente, as tarifas de água eram relativamente baixas para as famílias europeias, comparadas ao custo das contas de energia. Isso limita o dinheiro do qual dispõem as empresas para realizar reparos vitais. Na Irlanda, não há tarifa alguma para o consumo doméstico básico.
Segundo a OCDE, todos os países da UE exceto a Alemanha precisam aumentar seus gastos anuais com água em mais de 25% para cumprir com as regras da UE sobre água potável e águas residuais. Diante disso, é provável que as contas de água aumentem.
“É sabido que o preço pago pela água não reflete o custo real da extração, transporte, uso e poluição”, disse Cate Lamb, diretora global de segurança hídrica da CDP, que ajuda empresas e autoridades a monitorar seu impacto ambiental.
O órgão industrial Water Europe recomenda que se dê ênfase maior aos tipos de água usados para finalidades diferentes, como água reciclada para uso industrial e agrícola, enquanto a água das chuvas é preservada para beber. Segundo a entidade, o custo da inação “excederá em cinco vezes o investimento necessário” da indústria para enfrentar antecipadamente os riscos de escassez de água.
Mas o problema vai além da necessidade de água para beber, cozinhar, lavar e cultivar plantações. As tecnologias limpas —imprescindíveis para os esforços da Europa para abandonar os combustíveis fósseis— também requerem água.
A Comissão de Transições Energéticas, uma coalizão da indústria, diz que a água para a geração elétrica, eletrólise de hidrogênio, resfriamento de usinas elétricas nucleares e captura de carbono pode chegar a 58 bilhões de metros cúbicos por ano até 2050 —aproximadamente o dobro da água potável hoje consumida na Europa.
A extração de minerais críticos para a produção de veículos elétricos e turbinas eólicas pode elevar essa cifra em mais 4 bilhões ou 5 bilhões de metros cúbicos por ano, segundo o relatório da entidade.
Soma-se a isso uma rede sempre crescente de centros de dados, que consomem grande volume de água para seus sistemas de esfriamento e umidificação, ao lado da demanda por manufatura de semicondutores high-tech, que necessitam de água tratada “ultrapura” para a lavagem dos chips. O centro de dados Saint-Ghislain, do Google na Bélgica, consumiu 270,6 milhões de galões de água em 2022, o suficiente para encher 408 piscinas olímpicas.
Indústrias como a alimentícia e têxtil, que requerem grandes volumes de água para processos como a higienização de verduras ou o fixamento de corantes, também estão em risco. Mauro Scalia, diretor de negócios sustentáveis da entidade da indústria têxtil Euratex, disse que soluções para tratar água para que possa ser reutilizada não são simples nem baratas.
“O problema está ficando cada vez maior”, disse James Leten, gerente sênior de programas no Instituto Internacional de Água de Estocolmo. “A principal pergunta é como nos adaptarmos a isso de maneira democrática.”
Hector Llorente, que produz trigo em uma cooperativa em León, na Espanha, pode ter uma solução. Ele usa três aplicativos diferentes, incluindo o Climate FieldView, que monitoram as condições das plantações e os níveis de umidade em tempo real, usando satélites, além do fornecimento de água do reservatório local. Com isso, conseguiu reduzir seu consumo de água pela metade e ao mesmo tempo triplicar sua produção.
Llorente também reduziu o escoamento de fertilizantes, que pode poluir as fontes de água. “A água é ouro em pó, por isso a estamos utilizando com prudência”, ele disse, acrescentando que mais agricultores locais estão se interessando pela tecnologia.
Mas Johannes Cullmann, diretor de clima e água na Organização Meteorológica Mundial, disse que não há um número suficiente de agricultores na Europa incentivados a adotar a gestão hídrica pró-ativa, porque, quando são atingidos por estiagens, os governos tendem a socorrê-los com abastecimento de água emergencial ou compensação pela perda de safras.
Alguma coisa já está começando a ser feita sobre as políticas públicas. As regras lideradas pela UE sobre reutilização de água entraram em vigor em junho, e Bruxelas exigiu que os países membros tracem planos de gestão de secas.
O presidente francês Emmanuel Macron definiu a meta de até 2030 reutilizar 10% das águas servidas, caracterizando-a como parte de um novo plano de “sobriedade hídrica”. O Reino Unido estuda exigir rótulos obrigatórios de eficiência hídrica em vasos sanitários e máquinas de lavar roupa novos.
Mas Towsend, do Ecolab, diz que os políticos não estão agindo com rapidez suficiente. O que é crucial, para ele, será colher dados sobre como e onde falta água. “Uma crise começa muito antes de faltar água nas torneiras”, disse.
Tradução de Clara Allain