Aos 42 anos –11 deles vividos na Alemanha–, a advogada teuto-brasileira Delaine Kühn é a personificação do que os alemães chamam de “imigrante exemplar”. Ela não só migrou e aprendeu o idioma depois de adulta como, em 2017, já mãe de uma menina e após uma temporada de oito anos no Brasil, regressou à Alemanha para conquistar o que outros antes dela julgavam impossível: a licença plena para exercer a profissão em terras estrangeiras com um diploma do Brasil.
“Eu não vou esperar falar o alemão perfeito para poder começar a advogar. Quando atendo brasileiros, entendo eles melhor do que qualquer advogado alemão”, diz Kühn em entrevista à DW.
Vinda de uma família negra carioca, ela saiu do bairro de Colégio, periferia do Rio de Janeiro, para Hannover, na Baixa-Saxônia, onde concilia o trabalho à frente de um escritório próprio de advocacia com o mandato de vereadora distrital, cargo para o qual foi eleita em 2021 pelo Partido Social-Democrata (SPD). “Sinto que posso mostrar para outras pessoas, principalmente imigrantes, que a gente também faz parte; que eles também têm condições de se posicionar na política e ser representados lá dentro.”
Para Kühn, a trajetória de sucesso dela seria muito mais difícil se estivesse no Brasil. “Sei que aqui os estrangeiros sofrem preconceito, coisas que às vezes brasileiros brancos jamais sofreriam no Brasil. Mas aqui, se eu entrar em algum lugar, ninguém fica olhando torto, me perguntando o que eu faço”, diz. “Me sinto bem à vontade aqui –tirando o idioma, que não é perfeito–, de ir nos lugares e aparecer. No Brasil eu me fechava. Tentei ser vereadora lá e não tive a menor chance de alguém investir em mim, e aqui foi tudo mais fácil. É mais difícil ser respeitada no Brasil, nossa luta não é muito gratificada.”
No dia em que Kühn falou à DW, a conversa atrasou porque a advogada foi acionada de última hora em mais um dos casos espinhosos de violência doméstica que costumam chegar à mesa dela –a cliente, retida no aeroporto por um problema com a documentação, afinal conseguiu deixar o país para fugir de um marido abusivo. Esses “incêndios” recorrentes que a advogada é convocada a apagar a motivaram a fundar uma ONG dedicada ao tema, ainda em processo de gestação.
Como foi chegar a esse grau de inserção na sociedade alemã tendo imigrado já adulta?
Vim para cá com 26 anos porque me apaixonei por um alemão com quem sou casada há 19 anos. Como vim nessa condição, o maior desafio realmente é falar o idioma perfeitamente; é poder, às vezes, falar coisas bonitas, fazer discursos ou até brigar num idioma que não é o meu.
Eu abro a boca e todo mundo sabe que não fui criada aqui. Mas não tenho mais vergonha – às vezes tenho um pouquinho, mas vou lá e engulo. Tento me meter em tudo que é lugar: seja na política, em ações sociais ou em um trabalho como advogada. O idioma é a principal dificuldade, mas eu não vou esperar eu falar o alemão perfeito para poder começar a advogar. Quando atendo brasileiros, eu entendo eles melhor do que qualquer advogado alemão. A gente tem que ter outros mecanismos.
Quais?
Já que não estudei aqui, vou a reuniões de grupos de juristas para poder encontrar pessoas da minha área. Quando vi que nossos processos estavam aumentando muito, contratei secretária, ajudante, advogado alemão para que essa lacuna do idioma não virasse um problema profissional na hora de escrever alguma coisa rápido em alemão perfeito.
Como foi a sua jornada até virar advogada na Alemanha?
Acho que muita gente tem medo e pensa: “Como eu vou advogar na Alemanha se sou brasileira?” Até então os brasileiros atuavam com uma licença que só permitia o exercício em casos do Brasil, mas não relacionados ao direito alemão.
Fiz a inscrição em Portugal e, depois, na Alemanha, me registrei primeiro como advogada portuguesa, e depois de alguns anos obtive o título alemão. Nosso nicho inicialmente era brasileiro, mas agora trabalho muito com outros estrangeiros, africanos, latinos em geral, alemães também.
Comecei prestando consultorias, mais na área de direito migratório. E esse pessoal que eu atendia começou a voltar depois porque tinha problemas com o marido, de o homem ameaçar mandar a mulher de volta ao Brasil ou fazer ela perder a guarda dos filhos. E aí comecei a falar, nos grupos de Facebook, sobre a Lei de Proteção contra a Violência, que é similar à nossa Lei Maria da Penha. Infelizmente é uma área que o advogado alemão às vezes não quer fazer porque não dá muito dinheiro. Geralmente quem procura já está em uma situação de vulnerabilidade econômica, ou o agressor não tem muito dinheiro. O valor da causa também não costuma ser alto, e nem sempre o Estado cobre esses custos.
E por que você começou a se engajar politicamente na Alemanha?
Meu pai, que faleceu em 2012, sempre gostou de política e de ajudar as pessoas. E era o sonho dele que eu fosse política no Brasil – até cheguei a me candidatar, em 2016, pelo Partido Verde, mas não deu certo. Eu já era filiada ao SPD desde 2011 por influência do padrasto do meu marido, que foi deputado em Schleswig-Holstein. Ele falava: “Você tem que se filiar porque você é imigrante, é mulher”. Não era uma questão de cargos, mas de entender a política alemã e fazer contatos.
Quando eu voltei para a Alemanha quis me encontrar em um grupo, para não ficar sozinha. Comecei a me encontrar com o pessoal do SPD e fui vendo que tinha muita gente com histórico de migração. Virei vice-presidente local da ASJ (um grupo de juristas sociais-democratas) e depois, quando mudei de distrito, vi que lá não tinha nenhum imigrante de fato na regional do partido. Fui conversar com o prefeito distrital e os convenci de que seria importante ter uma mulher imigrante como candidata.
Como é o seu trabalho como vereadora distrital?
Sou conselheira em Ricklingen, um distrito com cerca de 40 mil habitantes, e vice-presidente do conselho dos imigrantes da região. É um trabalho mais local, de ver os problemas e ajudar com a organização das escolas, do trânsito, atender eleitores que às vezes perguntam ou pedem alguma coisa –tipo reforma de praças públicas e espaços de lazer e convivência para os jovens–, participar de eventos. Também tentamos fomentar a participação das mulheres na política.
Gosto bastante do trabalho porque sinto que posso mostrar para outras pessoas, principalmente imigrantes, que a gente também faz parte; que eles também têm condições de se posicionar na política e ser representados lá dentro. É um cargo praticamente voluntário. Não é como no Brasil, que tem salário bom e vários assessores. Aqui tem que ser feito mesmo por amor. É cansativo, mas o incentivo que tenho dos eleitores é grande. Há mais estrangeiros da região participando, até porque eles estão se vendo lá.
Como é para você ter esse reconhecimento? Sua trajetória já foi abordada até em livros.
É interessante ver como as pessoas aqui dão valor a livros que falam de minorias. Sinto falta disso no Brasil. Lembro que quando cheguei aqui pela primeira vez, em 2004, fiquei encantadíssima com uma novela que tinha já naquela época uma protagonista negra, que era uma coisa que no Brasil era um tabu. Hoje está melhor, mas eu não cresci me vendo na televisão. Aquilo me fez pensar sobre o racismo no Brasil e na Alemanha.
Quais são as diferenças? Foi mais fácil para você ser bem-sucedida na Alemanha?
Sim. Quando voltei ao Brasil da primeira temporada na Alemanha, em 2009, eu era jovem e tentei entrar nos grandes escritórios de advocacia, que trabalham com o direito internacional. Mandava meu currículo com foto e nunca era chamada; quando mandava sem foto, era chamada para a entrevista, mas nunca ficava com a vaga. Ficava triste, questionava minha competência. Mas na realidade aquilo era justamente o racismo velado. Não era possível fazer parte daquele meio, sabe?
Quando ia ao clube do Flamengo, sempre pediam a minha carteirinha, mas não do meu marido e das minhas enteadas. E eu era a sócia titular! Às vezes, quando estava na piscina, acontecia de me perguntarem de qual criança eu estava tomando conta. Outra vez vesti uma blusa branca para ir a uma festa da minha filha na escola alemã e acharam que eu era a babá de outra criança. Depois daquilo eu nunca mais usei branco no Brasil. Não estou desmerecendo esse trabalho, mas por que acharam que eu era babá? Isso na Alemanha geralmente não acontece comigo.
Meus pais, quando chegavam no apartamento em que eu morava, eram levados para o elevador de serviço, enquanto aqui, pelo menos, não tem muito essa diferença. São coisas tão pequenas e ridículas que você às vezes fica até sem ação para reclamar, brigar, entrar na Justiça –ainda mais naquela época.
Viver isso tudo no seu país, na sua cidade, é diferente; acho que até diminui sua autoestima. Se eu sofrer qualquer tipo de preconceito, discriminação aqui na Alemanha, não é que eu vá entender melhor, mas pelo menos eu realmente sou estrangeira. E no meu país eu não era –mas sempre tinha uma situação desagradável.
Sei que aqui os estrangeiros sofrem preconceito, coisas que às vezes brasileiros brancos jamais sofreriam no Brasil. Mas aqui, se eu entrar em algum lugar, ninguém fica olhando torto, me perguntando o que eu faço. Me sinto bem à vontade aqui –tirando o idioma, que não é perfeito–, de ir nos lugares e aparecer, fazer alguma coisa. No Brasil eu me fechava bastante. Tentei ser vereadora lá e não tive a menor chance de alguém investir em mim, e aqui foi tudo mais fácil. É mais difícil ser respeitada no Brasil, nossa luta não é muito gratificada.
Como pessoa negra, você acha que a inserção social –no sentido de cidadania plena– na Alemanha é mais fácil do que no Brasil?
Não gosto de ficar falando mal do Brasil, porque posso ser mal interpretada. Por mais que tenha sofrido essas coisas desde criança, sempre vou amar o meu país. É uma crítica construtiva. Tenho amigas negras no Brasil que têm condições e passam às vezes perrengues que eu aqui não passaria.
Não sei se sempre tive sorte, mas não vejo olhares tortos quando chego num lugar –e isso independentemente de ter condições financeiras ou não. Quando ia ao fórum no Brasil tinha que andar maquiada, comprar bolsa de marca, para poder ser chamada de doutora –nem gosto que me chamem assim, acho que porque sofri muito com isso na época de estágio e depois também de trabalho. Os atendentes às vezes achavam que eu era parte do processo, mas as minhas colegas eram “doutora fulana, doutora sicrana”. Eu era praticamente a única negra da turma de direito. Hoje em dia não é mais assim. Graças a Deus, muita coisa está mudando para melhor.