Ainda que não queira admitir, o presidente Javier Milei deu um passo atrás ao ver o pacotão de leis que propôs para reformar a Argentina travar em comissões do Congresso. Agora, o ultraliberal corre contra o tempo para impulsionar sua aprovação ainda nesta semana, testando pela primeira vez seu apoio.
Nesta segunda (22), o governo apresentou uma nova proposta aos deputados que exclui 141 artigos da versão original, com 664 pontos. Entre as mudanças, o texto reduz o prazo do estado de emergência que concede poderes excepcionais ao Executivo de no máximo quatro para dois anos.
Também adia a reforma eleitoral que pretendia acabar com as eleições primárias, retira a petroleira YPF da lista de empresas públicas a serem privatizadas e elimina a polêmica definição de manifestação como “uma reunião de três ou mais pessoas”, na intenção declarada de “evitar interpretações incorretas”.
Na economia, a proposta altera a fórmula de reajuste de aposentadorias e retira taxas a algumas exportações regionais, em aceno a governadores. Desiste ainda de reduzir fundos ambientais e culturais, diante de protestos de diretores de cinema que incluíram nomes como o do espanhol Pedro Almodóvar.
Por outro lado, o projeto de Milei mantém a maioria das suas reformas de base, como a privatização completa ou parcial de outras 40 estatais. “Não cedemos em nada, há melhoras. Quando alguém nos propõe uma melhora, aceitamos”, declarou o presidente em uma entrevista pela manhã.
“O resultado é um projeto que incorpora grande parte do debate público, mas que mantém as bases fundamentais de ampliação das liberdades” e “do equilíbrio orçamentário”, defende o governo na introdução do documento.
A chamada “lei ônibus” foi proposta por Milei ao Congresso às vésperas do fim do ano e vem sendo discutida há duas semanas por três comissões da Câmara: de Legislação Geral, de Assuntos Constitucionais, e de Orçamento e Fazenda —foram 70 horas de debate com a participação de 125 dos 257 deputados de todos os blocos.
Na primeira semana, um grupo de ministros e funcionários do governo responderam a centenas de perguntas desses parlamentares reunidos num plenário. Já na segunda, expuseram suas visões 201 organizações e associações de diversos setores, que vão da indústria aos direitos humanos.
Um parecer deveria ter sido finalizado pelas comissões até a última sexta (19), para enviar o projeto ao plenário da Câmara, mas, sem consenso, isso não aconteceu. Milei então estendeu na mesma noite, por decreto, as sessões extraordinárias que convocou para discutir a “megalei”, de 31 de janeiro para 15 de fevereiro.
Agora, o presidente argentino tem pressionado seus deputados e assessores a acelerar as negociações com as demais forças políticas, para que o projeto seja discutido na Casa na quinta (25) e depois remetido ao Senado. A expectativa de Milei sempre foi aprová-lo até essa data, porém ele esperava consegui-lo sem modificações.
Apenas um dia antes, nesta quarta (24), trabalhadores de diversos setores farão uma greve geral convocada pela Confederação Geral do Trabalho (CGT), a maior central sindical do país, contra as reformas e cortes de Milei —todos os voos entre Argentina e Brasil foram cancelados nesta terça e quarta.
Eles marcharão até as portas do Congresso, adicionando mais tensão a essa semana que colocará o apoio ao novo presidente à prova.
A coalizão governista A Liberdade Avança tem apenas 37 das 257 cadeiras na Câmara, e 7 das 72 cadeiras no Senado, mas tem tentado demonstrar confiança de que conquistará outros partidos de centro ou centro-direita, como o PRO do ex-presidente Mauricio Macri, a União Cívica Radical e até alguns peronistas e forças menores.
Os interlocutores de Milei que têm liderado as conversas com os congressistas são seu assessor “estrela”, Santiago Caputo, o ministro do Interior, Guillermo Francos, e o presidente da Câmara, Martín Menem, sobrinho do ex-presidente neoliberal admirado pelo atual líder.
O porta-voz do governo, Manuel Adorni, chegou a dizer que ficou “contente por ter encontrado uma oposição razoável”. Mas nem tudo será tão fácil. A nova versão final da megalei apresentada nesta segunda pela Presidência foi recebida com cautela pelos demais partidos, que apenas começam a analisar as mudanças, diz o jornal Clarín.
Veja as principais mudanças de Milei na ‘lei ônibus’
Como era | Como fica | |
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Número de artigos | 664 artigos | 523 artigos |
Poderes ao Executivo | Dava poderes extraordinários ao governo por 2 anos (prorrogáveis por mais 2 pelo próprio governo) ao declarar emergência econômica, fiscal, previdenciária, sanitária, administrativa, social, de defesa, entre outras | Prazo da emergência se reduziria a 1 ano (prorrogável por mais 1 com aprovação do Congresso) e seria eliminada a emergência “social e de defesa” |
Sistema eleitoral | Eliminava as eleições primárias, chamadas de “Paso”, e o sistema de votação em listas dos partidos para o Legislativo | Reformas seriam debatidas em sessões normais do Congresso a partir de março, assim como mudanças na saúde mental, Justiça nacional e lei de sociedades |
Privatização de empresas públicas | Incluía 41 empresas públicas na lista de possíveis privatizações | Petroleira YPF sairia da lista e outras três empresas só poderiam ser privatizadas parcialmente: Banco Nación, Nucleoeléctrica (energia nuclear) e Arsat (telecomunicações) |
Direito a manifestação |
Artigo determinava que uma reunião ou manifestação era definida como a “congregação intencional e temporária de 3 ou mais pessoas num espaço público“ | Artigo seria excluído “para evitar interpretações incorretas sobre o corte”. Ampliaria-se a proibição de manifestações políticas a funcionários “e empregados” públicos |
Reajuste de aposentadorias | Hoje o reajuste é feito a cada 3 meses, seguindo uma fórmula fixa que combina a variação salarial da população e a arrecadação da agência Anses, equivalente ao INSS brasileiro. Milei queria eliminar a fórmula atual e fazer os aumentos por decreto | Método atual seria mantido até março, mas a partir de abril os reajustes seriam mensais e automáticos, pela inflação do mês anterior. Se eliminariam as aposentadorias vitalícias para presidente e vice-presidente a partir de seu mandato, mantendo as da Corte Suprema |
Taxas a exportações | Estabelecia taxas de até 15% a exportadores de quase todos os setores, incluindo as chamadas “economias regionais” (como cítricos, algodão, erva mate e tabaco), o que desagradou governadores | Economias regionais ficariam livres das taxas, mas seria mantido o aumento de impostos à soja (de 31% para 33%), trigo e milho (de 12% para 15%), carne bovina (de 9% para 15%) e produtos industriais (de 0% para 15%) |
Ambiente | Proibia queimadas sem autorização e determinava que, se pedido não fosse respondido em 30 dias pelo governo, a queima estava autorizada | Prazo de resposta seria ampliado para 90 dias. Também seriam corrigidos “erros na redação” do capítulo no sentido de proteger glaciares e bosques |
Cultura | Propunha um desfinanciamento do Instituto de Cinema e Artes Audiovisuais (Incaa) e o fim do Fundo Nacional das Artes (FNA), que financia bolsas para artistas | Incaa manteria uma alocação específica de recursos e FNA não seria encerrado, mas teria gastos limitados |