No fim de 2023, algumas das principais celebridades da Rússia publicaram uma série de vídeos pedindo desculpas por terem aparecido quase nuas em uma festa privada.
No atual clima da Guerra da Ucrânia, essas pessoas foram condenadas por serem antipatrióticas, e os vídeos delas eram cheios de remorso.
Elas também aderiram a uma cultura de vídeos com pedidos de desculpas que se espalhava rapidamente e se tornou cada vez mais relevante desde a invasão em grande escala ao país vizinho, há quase dois anos.
Muitos desses vídeos são divulgados pela polícia e mostram pessoas que sofreram muito mais pressão do que os poderosos da cena pop russa.
Alguns dos pedidos de desculpas forçados foram feitos após supostas ofensas à ideologia oficial do Kremlin e não por qualquer outro motivo.
O objetivo desses vídeos é duplo, segundo o advogado de direitos humanos russo Dmitri Zakhvatov.
Humilhar os críticos da guerra com a Ucrânia e “intimidar aqueles que não apoiam a guerra, mas que até agora não tiveram coragem de dizer isso em público”, disse ele ao site Kavkaz Realii.
Essa tendência inicialmente ganhou destaque em 2015, quando vídeos de desculpas começaram a surgir nas redes sociais ou na TV estatal local da pequena república da Tchetchênia, no norte do Cáucaso.
A maioria dos vídeos mostrava pessoas pedindo desculpas por criticar o líder da Tchetchênia, Ramzan Kadirov.
Um deles mostrava um homem se desculpando por ser gay. Outro, um homem sem calças que criticava o líder tchetcheno por cantar uma canção chamada “O Presidente Putin É Meu Melhor Amigo”.
Os vídeos rapidamente se espalharam por outras partes do norte do Cáucaso e alguns foram publicados pela polícia.
Num artigo do Ministério do Interior da República de Caratchai-Circássia, um homem pediu desculpas por ter praticado snowboard na encosta de uma montanha vestindo apenas uma sunga semelhante àquela usada pelo personagem Borat.
Mais recentemente, desde a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, vários vídeos surgiram apresentando críticos do que o Kremlin chama de “operação militar especial”.
Alguns vídeos foram publicados em contas oficiais da polícia nas redes sociais. Muitos outros foram publicados por ativistas pró-guerra ou pelos meios de comunicação estatais, mas também parecem ter tido algum envolvimento policial.
Eles foram filmados em salas vazias típicas de delegacias e usam linguagem característica de relatórios policiais.
Em junho de 2023, um cantor chamado Sharlot queimou seu passaporte dizendo que não queria ser cidadão de “uma Rússia criminosa” e que queria mudar-se para Kiev, num gesto de apoio ao povo ucraniano.
Ele foi preso e logo apareceu em um vídeo no qual pedia desculpas por ter “falhado em compreender o que está acontecendo”.
Em outro exemplo, o Ministério do Interior da Chuváchia, uma região cerca de 600 km a leste de Moscou, publicou um vídeo de um homem pedindo desculpas por ter alterado pichações pró-guerra. Ele pintou uma bandeira vermelha e a transformou na bandeira da oposição russa.
Outros vídeos publicados pela polícia russa mostram homens arrependidos de ofensas como tentar derrubar um monumento com a forma da letra Z, que passou a ser símbolo pró-Rússia na guerra da Ucrânia, e atear fogo à porta de um blogueiro pró-guerra.
Houve acusações de que tais vídeos de desculpas são frequentemente gravados sob coação.
Por exemplo, um blogueiro conhecido como Nekoglai disse que a polícia em Moscou o forçou a aparecer diante das câmeras depois de deixá-lo nu, espancá-lo e tentar estuprá-lo com uma garrafa de plástico.
O vídeo de desculpas, divulgado pela agência de notícias oficial Ria Novosti, foi publicado depois que ele gravou um vídeo parodiando um soldado russo se defendendo de um ataque de drone ucraniano.
Vídeos de desculpas também estão sendo usados para envergonhar os críticos da guerra nas partes da Ucrânia ocupadas pela Rússia.
Dois terços dos vídeos de desculpas monitorados pela ONG russa de direitos humanos OVD-Info durante um período de quase 16 meses após o início da invasão vieram, na verdade, da região ocupada da Crimeia.
A antropóloga russa Aleksandra Arkhipova descreve os vídeos como “rituais de culpa e vergonha” que equivalem a uma punição extrajudicial.
“Isso viola a liberdade interna. Isso se tornou a regra. É muito ruim. Se alguém faz algo errado, a primeira coisa que deve fazer é gravar um vídeo de desculpas”, disse ela à BBC.
Uma mulher na Crimeia foi filmada pedindo desculpas por compartilhar músicas ucranianas em suas contas nas redes sociais, e outra por postar fotos de vários objetos nas cores azul e amarelo, as mesmas da bandeira ucraniana.
Uma atriz de teatro de marionetes da região ucraniana ocupada de Donetsk foi gravada pedindo desculpas por compartilhar músicas ucranianas no TikTok. Ela disse mais tarde que foi pressionada pela polícia a fazer isso.
“Ou você grava este vídeo ou vai para a cadeia e seu filho vai para um orfanato”, disse a atriz, citando o que um policial teria dito a ela.
Arkhipova, a antropóloga, afirma que os vídeos são produto de um presidente que trata os russos como um pai autoritário.
“Todos os outros são como crianças, que não têm autoridade legal própria. O pai está sempre certo. Portanto, se fizerem algo errado, terão que pedir desculpas ao pai.”
Ela também foi pressionada por autoridades russas, que a designaram como uma “agente estrangeira”.