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Máfias do Equador querem transformar país em prisão – 10/01/2024 – Mundo

No Equador, todos admitem. As prisões não são controladas pelo Estado, são controladas pelas máfias do crime organizado que transformaram os centros penitenciários em sua fortaleza, sua escola, seu local de recrutamento, seu arsenal, seu centro de operações.

A partir daí, com telefone e internet em mãos, os chefes dão instruções aos seus tenentes que estão do lado de fora, aos advogados que subornam juízes, aos policiais que alertam sobre operações e protegem seus bens, aos políticos –aqueles que eles colocaram nas cédulas de votação– , aos funcionários que eles cooptaram com dinheiro ou ameaças.

Também é lá que eles encenam suas guerras mortais pelo controle dos negócios ilícitos que operam. Os massacres nas prisões que vêm ocorrendo desde o final da década passada são, em grande parte, produtos dessa luta pelo poder entre os grupos mafiosos, vitórias sempre momentâneas em uma guerra infinita.

E esses grupos, antes silenciosos, antes se movendo entre o anonimato e a conivência do poder político, agora mostram todo o seu poder. Eles não apenas querem subjugar o novo governo de Daniel Noboa, a quem ameaçam assim como a seus dois antecessores. Agora eles coordenaram ataques em áreas públicas, que vêm ocorrendo desde a noite de 8 de janeiro.

Eles garantiram que atacarão qualquer pessoa que esteja nas ruas a partir das 23h (hora em que o toque de recolher decretado pelo governo começa). É o terrorismo operando em nível nacional. É a guerra do terror através da qual eles querem que todo o Equador seja uma prisão que eles controlam.

Enquanto tento seguir essa linha de discurso tentando explicar a quem não vive aqui o que está acontecendo no Equador, fico impaciente. Minha esposa correu para ver minha filha mais velha na universidade onde ela estuda para trazê-la para casa. Voltar de ônibus, como ela costuma fazer, parece hoje uma ideia muito ruim.

Quem sabe se os criminosos colocaram algum explosivo nas estações de ônibus. Eles já fizeram isso em uma passarela em Quito, já queimaram veículos em oito províncias na noite anterior, já incendiaram um caminhão que transportava carros novos. Já sequestraram policiais. Esta tarde eles já tomaram um meio de comunicação e obrigaram a transmitir ao vivo o assalto… Não, não venha de ônibus. Temos que ir buscá-la.

Minha esposa, que terminou seu trabalho rapidamente, diz que vai. Pega o carro e sai, provavelmente com o rádio ligado, acompanhando cada detalhe do assalto ao canal.

Tento retomar a análise. Na tarde da última terça-feira (9) o presidente Daniel Noboa declarou 20 grupos criminosos como terroristas. Vinte! E as autoridades dizem que podem adicionar outros. Como chegamos a isso? Não é fácil resumir, mas pode-se dizer que a situação geográfica e social do país nos trouxe a esse momento grave.

No norte do Equador, por muitos anos, as guerrilhas colombianas teceram uma rede de apoio para suas atividades, como o narcotráfico, que desenvolviam em conjunto com cartéis internacionais de drogas.

Essa mercadoria ilícita, cada vez mais numerosa e valiosa, era produzida na Colômbia e saía pelos portos equatorianos em direção aos Estados Unidos e América Central no início, e depois também para a Europa. Eles precisavam, portanto, da ajuda de grupos locais. Os cartéis os usavam para transportar drogas, armazená-las, dar segurança aos seus embarques.

À sombra desses cartéis, surgiram e/ou cresceram grupos criminosos como Los Choneros, Los Lobos, Los Tiguerones, Los Chone Killers…

Muitos deles eram dissidências de grupos primários. Outros surgiram de gangues juvenis. Eles são compostos, em grande parte, por jovens nascidos e criados em cidades e províncias historicamente negligenciadas pelo Estado, membros de famílias disfuncionais, desfeitas pela migração por falta de emprego, pobreza ou vícios. Jovens que encontraram nesses grupos um destino, um destino fatal.

Não consigo continuar. Ao pensar nesses jovens, penso na minha outra filha, a mais nova. Eu pude buscá-la mais cedo na saída da escola, que fica perto. Hoje, mais do que nunca, era preciso buscá-la. Por medo. E isso que até aquele momento o assalto ao canal de TV ainda não tinha acontecido. Descobrimos isso enquanto almoçávamos juntos. Ela está aqui, fazendo suas tarefas. Gostaria de isolá-la, para que ela não saiba o que está acontecendo e não se preocupe tanto. Mas não posso desligar a TV, pois a crise da tomada do canal implica uma transmissão ininterrupta, que deixa ouvir ao fundo sons de sirenes, helicópteros, explosões e gritos. E embora ela pudesse abaixar o volume, ela tem um telefone celular.

De repente, ela se levanta da cadeira, vem até a minha mesa e me mostra uma foto que um colega enviou para o chat do curso. Na foto, três homens armados apontam para civis deitados de bruços no chão de uma estação do recém-inaugurado metrô de Quito. Eu olho a foto, procuro sinais de montagem, de que é um caso em outro país. Nada. É uma foto real. É aqui, em uma estação no sul de Quito. Deixe-me verificar, digo a ela, com a maior calma possível. Eu procuro e descubro que a imagem é real, mas de um simulacro feito nos últimos dias. Conto a minha filha e peço a ela que avise seus colegas. Sorrio enquanto penso “malditas fake news”.

Volto a me concentrar. Ou tento. Esses grupos criminosos lutam até agora para serem os donos e senhores de um território que mais ninguém possa tocar. Os maiores procuram controlar tudo. Os assassinatos que ocorreram no Equador, nas ruas e nas prisões, desde o final da década passada, são em grande parte resultado dessas disputas.

Mas as gangues entenderam há muito tempo que, para vencer, para continuar operando e crescendo, não só devem derrotar seus rivais nas ruas: também devem evitar operações contra eles, expandir-se para outras áreas de atuação (como mineração ilegal, extorsão, sequestro, tráfico de pessoas) e garantir impunidade se forem capturados. Eles entenderam então que precisavam se apropriar das instituições de controle.

Ainda não estão juntas. Minha esposa diz que ainda não chegou ao ponto de encontro com minha filha mais velha. Há um caos no trânsito na cidade. Não fomos os únicos que achamos que hoje era preciso voltar para casa o mais rápido possível. Tudo mudou neste dia infeliz. São 16h e as lojas fecharam. Felizmente, a crise do canal de TV, que nos deixou todos apreensivos, acabou. A polícia controlou a situação e há 13 detidos.

Pela TV, ouço que o governo suspendeu as aulas presenciais. Minha filha mais nova ouve essa notícia e me mostra um polegar para cima. Que alívio, penso, mas também, que tristeza.

Me obrigo a retomar o texto. O chamado caso Metástase revelou a extensão da infiltração do crime organizado nas instituições estatais. Trata-se de uma investigação da Procuradoria-Geral do Estado que revelou as conexões de um chefe do tráfico com juízes, advogados, empresários, políticos e até relações obscuras com jornalistas.

Trata-se de Leandro Norero, assassinado na prisão em outubro de 2022. Quando ocorreu sua morte, a Procuradoria apreendeu o telefone celular que ele usava ilegalmente em sua cela. As conversas contidas no dispositivo, que renderam 14 mil páginas de conversas, levaram ao processamento de cerca de trinta juízes nacionais, juízes provinciais, promotores, policiais e empresários que facilitavam os negócios e garantiam a impunidade de Norero e seus associados, através do controle do sistema judiciário e da influência no campo político.

Essas conexões foram denunciadas na época por Fernando Villavicencio, o candidato presidencial que foi assassinado durante a campanha eleitoral em agosto de 2023, em Quito.

O caso está apenas começando e as repercussões, especialmente no âmbito político, ainda estão por serem vistas.

“Já cheguei onde deveríamos nos encontrar. Já estamos voltando para casa”, minha esposa me escreve. Respiro aliviado. Eu a ligo e ela me diz que estão bem, mas não sabe dizer a que horas chegarão. A cidade continua caótica. Eles vão tentar pegar atalhos para voltar o mais rápido possível. Mas estão bem. Estão juntas. Não consigo parar de pensar que deveria ter ido eu.

A angústia diminuiu. Volto para a tela. O caso Metástase ameaça revelar conexões de alto nível. A Procuradoria apresentou o caso nos dias em que na Assembleia Nacional o partido Revolución Ciudadana, do ex-presidente Rafael Correa, impulsionava um processo de impeachment contra a Procuradora-Geral. Um processo que ainda está em andamento, embora talvez com menos chances de prosperar agora que a titular do Ministério Público, Diana Salazar, recebeu apoio generalizado das autoridades Executiva e Legislativa, bem como de associações de juristas e setores acadêmicos. Não são poucas as pessoas que nos meios de comunicação e nas redes sociais pedem proteção para a Procuradora.

Foi ela, em uma das audiências públicas da semana passada na Corte Nacional, que revelou que sabia de um plano para matá-la e que era Fabricio Colón Pico, um dos líderes de Los Lobos, quem estava por trás desse plano.

O governo reagiu e prendeu Colón Pico, em Quito, na sexta-feira passada. A ação policial foi elogiada pelo presidente Noboa, que em uma entrevista no fim de semana disse que o governo tinha planos para Adolfo Macías, conhecido como Fito, líder da gangue Los Choneros, que estava preso em uma prisão em Guayaquil. Noboa não disse do que se tratavam esses planos. Mas, aparentemente, Fito os conhecia. No domingo, quando os policiais foram até sua cela com o objetivo de levá-lo para uma prisão de segurança máxima, Fito não estava. Ele havia fugido.

Foi então que o presidente Noboa decretou um estado de exceção, com toque de recolher das 23h às 5h, por dois meses.

Com certeza eles chegarão antes do toque de recolher. É impossível que demorem tanto. Não. Eles chegarão muito antes. Com certeza. Devem estar perto.

Volto. A reação ao decreto foi uma onda de atentados terroristas que incluíram ataques com explosivos, carros incendiados, sequestro de policiais e agentes penitenciários em pelo menos oito províncias do Equador. Tudo isso, desde a noite de segunda-feira até a madrugada e tarde de terça-feira.

Os criminosos gravaram alguns dos ataques e até disseram que matariam qualquer pessoa que estivesse nas ruas durante o toque de recolher.

O ato mais divulgado foi a tomada do canal TC Televisión, em Guayaquil. Os assaltantes queriam aparecer ao vivo e conseguiram por momentos. Antes que o sinal fosse cortado, ouviu-se eles dizerem: “Estamos no ar para que saibam que não se brinca com a máfia”. Foram ouvidos tiros e gritos dos funcionários da mídia, que foram obrigados a se deitar no chão.

Outro canal, Teleamazonas, continua transmitindo o desenvolvimento da crise e entrevista o general Wagner Bravo, ex-Secretário de Segurança. Ele enfatiza que esses ataques não são para defender um negócio. Eles não estão evitando um controle em uma estrada, não estão impedindo o fechamento de uma mina ilegal, não estão protegendo um carregamento de drogas. “Este é um ataque ao Estado”, diz Bravo.

O telefone vibra. Talvez por alguma interrupção momentânea no serviço telefônico, recebo muitas mensagens de uma vez. Nenhuma é da minha esposa. A maioria é de colegas de fora do país. Eles pedem uma informação, uma declaração, um texto, um contato, uma explicação, uma confirmação. Eles estão interessados em contar o que está acontecendo no Equador. Como sou grato. Mas não apenas isso. Cada um me diz que está comigo, com minha família, com meus compatriotas. Que se unem às nossas preocupações, que são suas também. Desejam-nos dias melhores. Me dizem para cuidar de mim. Me dizem que me amam. E isso faz com que eu não me sinta sozinho e sem saídas.

É um ataque contra o Estado, diz Bravo. E o Estado deve responder com toda a força e dentro da lei. Sim, claro, deve ser assim, mas já tentou antes e as máfias não perderam seu poder.

Eu acredito que nas condições em que está, é difícil para o Estado enfrentar essa grave situação sozinho, porque a fraqueza institucional é um dos problemas mais graves do país, devido à corrupção e à própria infiltração dos narcotraficantes.

A comunidade internacional deve apoiar a sociedade equatoriana, suas autoridades, seus órgãos de controle, aqueles que lutam contra essas máfias, que têm conexões internacionais, que com suas atividades ilícitas afetam não apenas os cidadãos equatorianos.

É necessário um acompanhamento forte e decidido da ONU, da OEA, da União Europeia, da CAN, dos governos da região, dos governos de outros continentes. É importante um apoio contundente, sem hesitações, para que a sociedade equatoriana e suas autoridades legítimas não sintam que estão lutando sozinhas e em desvantagem contra um monstro de mil cabeças e recursos infinitos.

É importante um apoio generalizado para que os criminosos também saibam que suas ações podem ser perseguidas onde quer que tenham impacto. Que as máfias assumam que a institucionalidade enfraquecida do Equador pode ser compensada por uma forte institucionalidade de nações e instituições amigas, solidárias e empáticas.

O cachorro sai para a janela, late, fareja rapidamente. Ele é capaz de ouvir o veículo de longe. Isso me diz que eles estão chegando. E assim é. Depois de três horas, que para mim pareceram cem, minha esposa chegou em casa com minha filha. Elas estão sãs e salvas. Abraço minha filha, ela ainda com sua mochila nas costas. Estou bem, ela me diz, e sorri. Minha esposa demora um pouco para entrar. Ela está escrevendo para sua irmã que mora em Guayaquil. Ela entra tranquila, sorridente. Nos abraçamos. Agora estamos todos em casa, juntos, nesse dia infernal.


Esta reportagem foi publicada originalmente aqui.

Fonte: Folha de São Paulo

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