spot_img
HomeMundoEstados Unidos são seus próprios arqui-inimigos - 10/01/2024 - Ian Bremmer

Estados Unidos são seus próprios arqui-inimigos – 10/01/2024 – Ian Bremmer

Embora o poder militar e econômico dos Estados Unidos continue excepcionalmente forte, seu sistema político é mais disfuncional do que o de qualquer outra democracia industrial avançada. Em 2024, a eleição presidencial dos EUA e as divisões políticas que ela exacerbou testarão a resiliência da democracia americana como nenhuma outra coisa que o país experimentou em seus mais de 150 anos.

O sistema político americano está notavelmente dividido, e a confiança pública em suas instituições centrais, especialmente o Congresso, o Judiciário e a imprensa, registra níveis historicamente baixos. Adicione a isso a ampla desinformação, bem como os americanos enquanto um coletivo terem deixado de acreditar em um conjunto de fatos estabelecidos sobre a sua nação e o mundo.

Os prováveis candidatos presidenciais dos dois principais partidos são em grande medida considerados inadequados para o cargo. Donald Trump enfrenta dezenas de acusações criminais graves, muitas diretamente relacionadas a ações que tomou durante seu mandato. Já o presidente Joe Biden terminaria seu segundo mandato com 86 anos. Uma clara maioria dos americanos não quer que nenhum deles lidere a nação.

A amargura partidária aumentará na corrida para a eleição. A partir do momento em que (quase certamente) assegurar a indicação do seu partido à Presidência, Trump sequestrará a política republicana e americana, pois até mesmo os republicanos mais relutantes no Congresso —e a maior parte da imprensa conservadora, dos grupos de ativistas e daqueles com interesses financeiros— se alinharão a dele. Suas declarações, por mais extravagantes que sejam, mudarão a narrativa nacional e moldarão a direção do Capitólio, assim como nos Legislativos estaduais em todo o país. O resultado será mais extremismo político, divisão e paralisia.

Sabendo que enfrentará algum tempo na prisão se perder em novembro, Trump usará sua plataforma digital, seu controle sobre o Partido Republicano e suas conexões com a mídia para deslegitimar tanto o sistema judiciário que o está processando, quanto a integridade da própria eleição. Sua capacidade de se apresentar como um mártir populista e suas alegações preventivas de fraude eleitoral encontrarão uma audiência receptiva entre os americanos conservadores.

Esses esforços não vão paralisar o processo eleitoral, mas certamente persuadirão muitos de seus apoiadores a duvidar da legitimidade do resultado das eleições —um problema exacerbado pela desinformação impulsionada pela inteligência artificial e pelas “câmaras de eco” das redes sociais.

Em um mundo assolado pela guerra e pela fraqueza econômica, a perspectiva de uma vitória de Trump enfraquecerá a posição dos EUA no cenário global à medida que os legisladores republicanos adotarem suas posições de política externa e os aliados e adversários dos EUA se protegerem contra suas previsíveis políticas.

Mesmo antes de a eleição ser decidida, o apoio dos EUA à Ucrânia enfrentará ventos contrários mais fortes no Congresso, colocando sob tensão a aliança transatlântica e deixando os ucranianos e seus apoiadores europeus na linha de frente em apuros. Kiev tomará ações cada vez mais imprudentes para obter o máximo de ganhos possível antes que o próximo presidente assuma o cargo, enquanto as esperanças de Vladimir Putin de um fim definitivo à ajuda dos EUA em 2025 fortalecerão a determinação da Rússia de continuar lutando.

No Oriente Médio, o notável apoio de Trump a Israel e sua abordagem agressiva em relação ao Irã limitarão o espaço para manobras políticas como as de Biden. A pressão dos republicanos no Congresso tornará politicamente mais difícil para o atual presidente preservar o “degelo” nas relações com a China este ano. A sombra de Trump levará aliados e adversários dos EUA a se preparar para seu retorno ao cargo, com consequências desestabilizadoras muito antes do dia da posse.

Se Trump vencer a eleição, Biden vai ceder. Mas, embora os líderes democratas sejam menos propensos a afirmar que a eleição foi “manipulada” do que o ex-presidente, eles ainda tratarão Trump como ilegítimo e acreditarão que ele deveria estar na prisão. A resposta nas principais cidades seria uma repetição dos enormes protestos de rua durante a transição presidencial de 2016, mas em um país agora ainda mais amargamente dividido e com mais democratas convencidos de que Trump 2.0 ameaça o futuro da democracia americana. Seja por confrontos com manifestantes da força contrária, elementos extremistas ou atores oportunistas, a violência generalizada é um risco real.

Se Trump perder, ele fará tudo ao seu alcance, legal ou ilegal, para contestar o resultado e questionar a legitimidade do processo. Como opositor, ele teria menos opções para desafiar os resultados do que teve como presidente em 2020. Porém, isso não o impedirá de tentar, especialmente se ele enfrentar a possibilidade real de passar um período na prisão.

Ele alegará fraude generalizada mais uma vez. Ele incitará campanhas de intimidação contra mesários e secretários de estado em estados republicanos e democratas, exigindo que eles “encontrem” votos extras em seu nome. Ele pressionará governadores republicanos a apresentar listas de eleitores do partido em estados em que os democratas venceram. Ele pressionará senadores e representantes de sua sigla a desqualificar os votos do colégio eleitoral democrata.

Nenhuma dessas táticas provavelmente terá sucesso, mas elas causarão mais danos à já baixa confiança pública na integridade das instituições democráticas dos EUA.

A menos que ocorra uma vitória democrata improvável, os republicanos verão a vitória de Biden como ilegítima, alegando que a eleição foi “roubada” ou que investigações politicamente motivadas dificultaram a campanha de Trump, e verão sua prisão como um caso de perseguição política. Embora a violência em larga escala seja menos provável nesse ambiente, a divisão política dos EUA se aprofundará e a fragmentação do país em estados, cidades e municípios republicanos contra democratas se acelerará, politizando ainda mais as decisões sobre onde morar, fazer negócios e investir.

Os EUA já são a democracia industrial avançada mais dividida e disfuncional do mundo. A eleição de 2024 agravará esse problema, independentemente de quem ganhe. Com o resultado da votação sendo essencialmente uma questão de sorte (pelo menos por enquanto), a única certeza é o dano contínuo que ela causará ao tecido social, às instituições políticas e à posição diplomática do país.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

Fonte: Folha de São Paulo

RELATED ARTICLES

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

- Advertisment -spot_img

Outras Notícias