A virada de 2023 para 2024 abriu uma nova fase na Guerra da Ucrânia, que se aproxima de completar o segundo aniversário no fim de fevereiro.
Com ímpeto renovado pelas posições política e militar reforçadas no conflito, a Rússia lançou seus mais potentes ataques aéreos desde o início da guerra, empurrando o vizinho para uma posição defensiva após o fracasso da contraofensiva lançada em junho do ano passado.
Kiev, por sua vez, tem tentado mostrar iniciativa com ataques mais intensos contra o território russo, na região de Belgorodo (sul do país). Após executar a mais mortífera ação desde a invasão russa, quando matou 25 civis no sábado (30), nesta quarta (3) lançou novamente mísseis e drones na área, sem causar danos aparentes.
É um ponto nevrálgico para o presidente Vladimir Putin, que já prometera vingança pelo ataque de sábado, mas o contexto da nova fase da guerra lhe é favorável. Desde a sexta-feira (29), ao menos 300 mísseis e drones foram disparados contra as principais cidades ucranianas, a começar pela capital.
O maior ataque de 2023 ocorreu na sexta, sendo quase repetido em intensidade na terça (2), quando cinco pessoas morreram em Kiev e Kharkiv, a segunda maior cidade do país, próxima da linha das batalhas.
Segundo a Ukrenergo, operadora local de energia, já há danos consideráveis à distribuição de eletricidade em pleno inverno, com temperaturas no país rondando o zero grau. Como no ano passado, o objetivo russo parece ser atacar a moral, mas o escopo da ação é outro.
Como já haviam advertido especialistas militares e alguns governos, como o do Reino Unido, a Rússia parece ter de fato recomposto sua capacidade de produção militar. Segundo o analista militar russo Ivan Barabanov, a propaganda oficial de que ela foi quadruplicada em alguns setores pode ter exageros, mas reflete uma realidade.
“Partes da indústria foram configuradas para a guerra”, diz, estimando que com a reabertura do fluxo de chips mais avançados para o país, por meio de países amigos como a China e intermediários na Ásia Central e Cáucaso, os russos hoje podem produzir até 100 mísseis de alta precisão por mês, contra 40 antes da guerra.
Ao longo de 2023, o Kremlin dosou seu emprego para economizá-los para as ações de inverno, e os ataques maciços da virada do ano, em que ondas de drones foram sucedidas por mísseis balísticos, de cruzeiro e até hipersônicos, sugerem que as defesas antiaéreas ocidentais do país podem ter chegado a um ponto de sobrecarga.
Tudo isso configura a nova fase da guerra, numa divisão arbitrária que mostra outras cinco etapas anteriores à atual. Esse sexto capítulo é, como os outros, uma continuação dos acontecimentos passados.
A quinta fase foi a mais longa do conflito, com dinâmica em campo com a contraofensiva ucraniana e fatos de impacto, como o motim mercenário na Rússia. O cenário desafiador para Putin foi ultrapassado, não sem arranhões, mas o presidente está na posição mais confortável desde que suas tropas foram repelidas de cercar Kiev na abertura da guerra.
Além de frustrar a intenção do rival Volodimir Zelenski de ver cortada a ligação terrestre entre a Rússia e a Crimeia anexada em 2014, Putin acabou 2023 com mais ganhos do que Kiev —embora nenhum lado tenha tido uma vitória decisiva, longe disso. Segundo contas do Instituto do Estudo da Guerra (EUA), o Kremlin amealhou 648 km2 ao longo do ano, ante 395 km2 recuperados pelos ucranianos.
Mais importante, há uma maré política diferente em curso. Putin, que caminha para seu quinto mandato presidencial na eleição russa de março, mira o pleito americano de novembro. A eventual vitória dos republicanos de Donald Trump deverá coroar o movimento atual dos EUA, de retenção de apoio militar a Kiev.
Isso já ocorre no Congresso, com o pacote de R$ 300 bilhões para 2024 tendo sido vetado pela oposição ao democrata Joe Biden. Com as dificuldades de Kiev e a campanha eleitoral em curso, fora fatores de tergiversação como uma eventual guerra ampliada no Oriente Médio, ficará difícil para o atual presidente focar no apoio a Zelenski.
Na Europa, parece haver mais chance de ajuda militar de valor semelhante vir a ser liberada, mas os entraves são grandes. A incerteza sobre o financiamento do conflito, que até outubro custou R$ 1,2 trilhão para os aliados ocidentais de Kiev segundo o Instituto para Economia Mundial de Kiel (Alemanha), permanece.
Assim, não é casual que tenham surgido relatos no Ocidente de que os russos estão dispostos a negociar —numa posição aparente de força. A essa altura, contudo, eles são mais reveladores da vontade do EUA e aliados de que Kiev aceite algumas perdas para acabar com a guerra.
Com tudo isso, além do usual temor ocidental de uma escalada do conflito, a pressão política sobre o ucraniano cresce também na frente doméstica. As Forças Armadas querem a mobilização de até 500 mil soldados a mais para o esforço de guerra, que envolve talvez 700 mil pessoas diretamente.
Zelenski resiste à medida, impopular como Putin sabe quando fez sua mobilização em 2023, mas os resultados fizeram ele ceder e preparar decreto para um incremento parcial no número de convocados, mudando regras para aqueles entre 25 e 27 anos.