Aqui dentro não tem ho ho ho. Não tem luz de natal.
Aqui tem suvaco suado, jaqueta cheirando a sebo, cigarro, bafo de café apressado de bar.
Aqui não tem presentes caros, eletrodomésticos em 843789 prestações, vinhos envelhecidos em barricas de carvalho francês.
Só rostos, muitos, também maturados — mas no ir e vir diário. De onde e pra onde, não sei.
Aqui a música que balança os corpos é a das engrenagens contra os trilhos do trem.
Olho pra fora: vejo o mar.
Nessa época de dezembro, com um frio mediterrâneo ameno-mas-ósseopenetrante agasalhando os corpos, a linha de trem que conecta Barcelona e a costa norte da Espanha está abarrotada:
de turistas,
trabalhadores,
sombras desgarradas fumando escondidas no banheiro do vagão,
adolescentes esparramados pelas escadarias das portas automáticas,
embrulhos e sacolas coloridas aqui e ali.
No coração da fauna nativa, aflora o desfile característico da época — os personagens acidentalmente natalinos do vagão de trem.
Começa com o violinista.
Na minha simplista leitura de 2 segundos, fantasio que ele é do leste europeu.
A tez acinzentada, os cabelos igualmente grisalhos. Um topete abundante, jovial, contrastando com o rosto cansado.
Sem encarar a plateia, olhos fixos no chão, finca violino debaixo do queixo e começa o primeiro número: um trecho da Sonata para violino e piano número 9 em Lá maior, opus 47, de Beethoven. Um clássico, erm, clássico.
As chicotadas do topete pontuam a interpretação. Meo deos, sou só eu que..?. O mundo de repente casa com a música, um videoclipe do looney tunes vespertino fluindo abissalmente entre a introspecção e o escândalo.
Seguem-se aplausos esparsos da plateia. Ele emenda dois outros hits da música clássica com a mesma paixão. O amplificadorzinho solta a base orquestral e ele se entrega. Fecha os olhos. Não está e está. Completamente no flow.
Ao terminar, segue com os olhos baixos. Não encara, não pede. Passa com uma boina de feltro, tão unida ao seu corpo que estender-lhe uma moeda é quase uma violência, é abraçá-lo, invadi-lo, sentá-lo no colo e murmurar, como um eco de novela japonesa da tv Gazeta nos anos 90: está tudo bem, vai ficar tudo bem.
O violinista ganha algumas moedas e discretamente desliza pro vagão seguinte.
Enquanto escuto recomeçar a Sonata de longe, entra o segundo personagem em cena: um senhor venezuelano que já conheço.
Desta vez, além dos usuais isqueiros, lenços de bolso e chicletes, ele oferece também canetinhas com pompons coloridos. Um toque natalino. Uma lembrancinha pra filha da senhora, do senhor. Por favor, me ajudem. Não estou aqui para incomodar, mas minha família precisa comer. Agradeço de coração. Feliz Natal pra todos.
Num dia normal, duas “atrações” num mesmo trajeto já são algo excepcional, mas hoje vem aí o terceiro.
Também o conheço.
O fauno.
A palavra emerge à minha revelia, porque as pernas torcidas para trás me lembram a figura mitológica. Não. Um ser humano. As pernas invertidas por uma deformação de nascença.
As calças arriadas exibem os membros sujos, repletos de marcas incertas, arranhões. Ele deixa que falem, que gritem por si. Chacoalha sonoramente as moedas dentro de um copo sujo de papel diante dos olhares furtivos ou desviantes agarrados ao chão. Essa é sua música natalina. É sua música de cada dia.
Quem mais ganha dinheiro nesse incorreto festival é, sem dúvida, o violinista.
Eu compro um lenço de bolso. Eu olho o mar. Já entramos na cidade. É hora de sair. Também vou para o trabalho. Também não sei pra onde vou. Não sei pra onde vão os personagens todos desse dia. Mas é Natal: as ruas de Barcelona brilham, os transeuntes se esbaldam com suas sacolaças, a música pop ecoa num ringue de patinação montado na praça Catalunya, coração da cidade. É Natal. Feliz Natal pra todos.
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