Ao longo dos 34 anos em que trabalhou na ONG Médicos Sem Fronteiras, em conflitos e guerras ao redor do mundo, o médico belga Marc Biot diz nunca ter visto tantos ataques contra hospitais e profissionais de saúde como os perpetrados atualmente pelas forças de Israel na Faixa de Gaza.
“O que está acontecendo é sem precedentes. Eu e todos os meus colegas na organização nunca vimos uma destruição tão maciça de instalações médicas, bombardeio indiscriminado de civis e bloqueio de ajuda humanitária”, diz Biot, que é diretor de operações da MSF.
Dois médicos da organização morreram em um ataque contra o hospital Al-Awda em novembro. Um técnico de laboratório da ONG também foi morto em um ataque a um campo de refugiados e dois familiares de funcionários da MSF morreram durante tentativa de retirada de civis de um grupo que estava no norte de Gaza.
Uma investigação conduzida pela ONG concluiu que os veículos que levavam os funcionários e seus familiares estavam claramente identificados e foram atingidos de maneira deliberada por soldados de Israel. O governo em Tel Aviv diz que está investigando o episódio.
Na última terça-feira (19), a Organização Mundial de Saúde anunciou que 27 dos 36 hospitais de Gaza não estão funcionando por causa de danos resultantes de ataques, bombardeios de Israel ou falta de combustível e funcionários. Nesta quinta-feira (21), a OMS disse que no norte do território palestino, não há mais nenhum hospital funcional.
O Unicef, agência da ONU para bem-estar das crianças, protestou contra mortes em hospitais. “É revoltante, crianças que estão se recuperando de amputações nos hospitais estão sendo mortas dentro desses hospitais”, disse o porta-voz James Elder.
Segundo ele, o hospital Nasser, um dos maiores ainda em operação em Gaza, foi bombardeado duas vezes nas 48 horas anteriores à entrevista concedida à agência de notícias Reuters.
O governo de Israel afirma que integrantes do Hamas se escondem dentro de hospitais ou em túneis abaixo das instalações médicas.
Segundo Biot, a lei humanitária internacional exige que qualquer pessoa que entrar no hospital sem armas, seja um paciente, um profissional de saúde, um cuidador de um paciente, ou mesmo combatente ferido, deve ser protegido. “Isso foi completamente destruído aqui. E o mundo abriu uma caixa de Pandora, pessoas muito mal-intencionadas que podem pensar em fazer o mesmo, porque o exemplo foi criado por um país como Israel”, diz o médico belga.
Ele ressalta que todos na MSF ficaram “horrorizados e chocados” com os ataques terroristas do Hamas contra civis israelenses em 7 de outubro —o saldo foi de 1.200 mortos, segundo Tel Aviv. “Condenamos da maneira mais firme possível essas ações”, diz Biot.
Mas ele também critica as ações das forças de Israel. “Eles podem ter objetivos militares e alvos, mas isso não deve ser feito às custas da população. Encontrar outro caminho para os alvos é problema deles. Nosso problema é que os pacientes, a equipe médica e a população civil são negligenciados e são danos colaterais para atingir os alvos deles.”
Na visão do diretor de operações da MSF, os ataques de Israel contra hospitais não são indiscriminados; são deliberados. “No hospital Al-Awda, cinco profissionais de saúde, incluindo dois funcionários da MSF, foram mortos. E vimos quando enfermeiras e sanitaristas foram mortos por atiradores. Um de nossos cirurgiões foi ferido de forma grave por uma bala que atravessou uma janela. Não acredito que isso seja por acaso, não diria que é indiscriminado. Acredito que seja um ataque direcionado a hospitais e instalações de saúde”, diz o médico.
“Em Gaza, o direito humanitário internacional é simplesmente desprezado, esmagado”, acrescenta.
A Médicos Sem Fronteiras atua em Gaza desde 1989 e estava concentrada em cirurgia reconstrutiva para vítimas de acidentes, bombardeios ou pessoas baleadas. Desde o dia 1º de dezembro, a equipe da ONG atendeu mais de 2.000 pessoas feridas —670 chegaram mortas aos hospitais operados pela organização.
Segundo Biot, a falta de equipamentos e insumos limita radicalmente o trabalho dos médicos, que frequentemente se limita a tentar manter os pacientes em quadros estáveis enquanto esperam mais recursos.
Para ele, qualquer tipo de cessar-fogo é benéfico. “Qualquer possibilidade de entrada de ajuda humanitária, de cuidar das pessoas e permitir que elas enterrem e chorem seus mortos é bem-vinda”.
A MSF conseguiu mandar para Gaza 50 toneladas de insumos médicos e têm outro carregamento de 25 toneladas aguardando no Egito para ingressar. Segundo a ONG, a quantidade de ajuda humanitária que tem obtido autorização para entrar no território é insuficiente para atender as necessidades.