No mês em que a Doutrina Monroe completa 200 anos, uma proposta no Congresso dos Estados Unidos quer que o governo americano declare oficialmente sua morte.
Sob o mote “América para os americanos”, a política foi criada pelo presidente James Monroe como uma resposta à interferência europeia nos recém-independentes América Latina e Caribe.
Com o tempo, no entanto, ela acabou servindo de base para intervenções americanas na região em defesa do interesse de Washington e de empresas do país —o apoio a golpes de Estado são um dos exemplos mais lembrados.
A resolução, antecipada para a Folha, foi apresentada nesta quarta-feira (20) pela deputada democrata de origem porto-riquenha Nydia Velazquez.
Além de determinar que o Departamento de Estado declare o fim da Doutrina Monroe, o texto estabelece uma série de mudanças na política externa americana para a região, sob o rótulo de “Bom Vizinho”.
Uma das propostas do projeto é que as contribuições americanas para o Fundo Amazônia sejam ampliadas e se tornem recorrentes.
O presidente Joe Biden disse em abril que pretendia destinar US$ 500 milhões (R$ 2,43 bilhões) ao fundo, mas, sem aprovação do Congresso, esse dinheiro até agora não veio –e, diante de outras prioridades de política externa americana, como as guerras na Ucrânia e no Oriente Médio, as expectativas para que a contribuição ocorra são baixas.
“O aniversário de 200 anos da Doutrina Monroe apresenta aos EUA e ao hemisfério a oportunidade de superar uma estratégia de política externa ultrapassada e ineficaz”, diz Velazquez.
A deputada afirma que os desafios comuns da região, como tráfico de drogas, migração em massa e mudança climática, exige a cooperação de todos os países do continente. O texto da resolução argumenta que há um vínculo claro entre as intervenções americanas, como o Plano Colômbia e as sanções, e a violência e as ondas de imigrantes que chegam aos EUA.
Assim, a resolução determina que sejam encerradas todas as sanções econômicas unilaterais impostas por decreto executivo –como as que têm como alvo a Venezuela– e que, juntamente com o Congresso, seja eliminado o embargo a Cuba.
O texto prevê ainda que, toda vez que uma transferência de poder ocorrer de forma “extraconstitucional”, seja automaticamente disparada a revisão de assistência bilateral entre os EUA e o país em questão.
A resolução determina que o governo dê prosseguimento ao processo de abertura dos arquivos confidenciais americanos relacionados às ditaduras latino-americanas e a outros períodos de graves e massivas violações de direitos humanos –no início de dezembro, o gabinete de Velazquez integrou um evento no Congresso dos EUA pedindo a divulgação dos arquivos referentes ao regime militar brasileiro.
O texto cita, inclusive, o envolvimento americano no golpe de 1964 no preâmbulo do projeto, relembrando que os EUA financiaram a oposição e “começaram a buscar lideranças militares para apoiarem eventualmente o golpe de 1964 contra o presidente brasileiro João Goulart que resultou em uma ditadura militar de 21 anos no Brasil”.
O projeto elenca outras intervenções americanas na história da América Latina, como a invasão a Porto Rico e Cuba em 1898, as operações no Panamá, Honduras, Nicarágua, México, Haiti e República Dominicana no início do século 20, o papel da CIA no golpe contra o presidente chileno Salvador Allende e o apoio dos EUA à Operação Condor, por meio da qual ditaduras latino-americanas cooperaram para reprimir dissidentes.
A resolução estabelece também que os EUA promovam uma reforma da OEA (Organização dos Estados Americanos), em conjunto com os demais membros, sob a crítica de que a entidade ficou em silêncio diante de várias dessas violações americanas na região.
Relembrando o papel do FMI (Fundo Monetário Internacional) e suas condicionalidades sobre os governos da região, a resolução determina que o governo dos EUA apoie uma reforma da entidade, assim como do Banco Inter-Americano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial.
Nesse ponto, a deputada e Biden estão alinhados –o presidente americano vem defendendo em discursos mudanças nos bancos multilaterais, com o objetivo de torná-los mais competitivos, em resposta ao aumento de investimentos chineses na região.
O texto estabelece que os EUA apoiem emissões regulares de uma conta especial do FMI, disponibilizada em situações de emergência, como durante a Covid, para que países em crise no balanço de pagamentos possam se amparar nesses recursos.
A resolução determina ainda a criação de um novo fundo, intitulado “Perdas e Danos”, pelo qual a Organização das Nações Unidas (ONU) ficaria responsável. A proposta é que os recursos sejam usados para apoiar países em desenvolvimento em ações relacionadas ao clima.
Na semana passada, uma discussão sobre a Doutrina Monroe foi realizada no Congresso, patrocinada pela organização sem fins lucrativos Demand Progress, em colaboração com o gabinete de Velazquez. A Folha participou do evento como moderadora.