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Câmera perdida havia 50 anos reacende mistério nos Andes – 12/12/2023 – Mundo

No alto do Monte Aconcágua, a encolhida geleira Polonesa cospe o que ela uma vez devorou —neste caso, uma câmera Nikomat de 35 mm de 50 anos. Dois transportadores, preparando-se para uma próxima expedição, estavam amarrando cordas no fino e árido ar de um dia de fevereiro. Era pleno verão na América do Sul.

A câmera brilhava ao sol, desafiando ser notada. A lente estava quebrada. O visor na parte superior mostrava que 24 fotografias haviam sido tiradas. A metade inferior da câmera estava presa em uma capa de couro desgastada com uma alça grossa. Na capa, em fita adesiva azul, havia um nome americano e um endereço no Colorado.

Nos ciclos sazonais de neve e gelo das montanhas, equipamentos abandonados e perdidos são descobertos a cada verão —tendas rasgadas, machados de gelo, luvas perdidas. Ocasionalmente, um corpo. Mas esta não era apenas mais uma câmera, embora os transportadores ainda não soubessem disso. Um deles a levou para o acampamento, onde um guia veterano, Ulises Corvalan, preparava o almoço.

Corvalan olhou para cima e perguntou sobre o nome na parte inferior da câmera. “Janet Johnson”, veio a resposta. Corvalan arfou. “Janet Johnson!?”, gritou.

A excitação fervilhou. Você sabe sobre Janet Johnson, a professora? Sobre John Cooper, o engenheiro da Nasa? Sobre a mortal expedição americana de 1973? Você já ouviu a lenda? Ela havia sido transmitida por décadas, beirando o mito.

Eis o que era certeza: uma mulher de Denver, talvez a alpinista mais experiente do grupo, havia sido vista pela última vez viva na geleira. Um homem do Texas, que fez parte das missões Apollo à lua, jazia congelado nas proximidades.

Havia declarações contraditórias dos sobreviventes. Havia um juiz que exigia uma investigação sobre um possível jogo sujo. Havia três anos de buscas incansáveis para encontrar e recuperar os corpos.

A descoberta da câmera despertou mais intriga, deixando mais perguntas do que respostas. Foi assim que Johnson e Cooper se tornaram parte do folclore de Aconcágua. Agora, quase cinco décadas depois, uma câmera antiga emergiu da geleira em recuo. Assim, pelos caprichos das mudanças climáticas e do acaso, uma lenda há muito perdida foi trazida à luz.

A Equipe

Aconcágua é o gigante de ombros largos dos Andes, com uma forma mais parecida com um punho do que com um dedo.

A primeira pessoa conhecida por alcançar o cume de 22.838 pés foi Matthias Zurbriggen, da Suíça, em 1897. Em 1934, uma expedição polonesa enfrentou com sucesso uma rota mais perigosa no lado nordeste do Aconcágua, subindo uma enorme geleira que se estende quase 2.000 pés verticalmente em direção ao cume.

A camada de gelo recebeu o nome desse grupo: El Glaciar de los Polacos. Até 2022, houve 153 mortes registradas na montanha. Em 1973, Johnson e Cooper foram os números 26 e 27.

A equipe de escalada

A maioria deles fazia parte do clube de escalada Mazamas, fundado em Oregon em 1894 e liderado por um advogado de Portland chamado Carmie Dafoe. Ele defendeu a viagem à Aconcágua, observando que um membro do Mazamas havia escalado a montanha na década de 1940. Seu grupo tentaria ser a quinta expedição a alcançar o cume pela Rota Polonesa.

O guia seria Miguel Alfonso, argentino de 38 anos que havia chegado ao cume cinco vezes, uma vez pela Rota Polonesa. Dafoe pediu um depósito de $50 de qualquer pessoa interessada, juntamente com uma lista de ascensões bem-sucedidas e referências. Em junho de 1972, o líder dos Mazamas anunciou os membros da equipe, todos homens americanos.

Jim Petroske, um psiquiatra de Portland, seria o “vice-líder”. Bill Eubank, um médico da cidade do Kansas, era altamente recomendado por Petroske e seria o médico da expedição. Em seguida, vieram Arnold McMillen, um fazendeiro de laticínios de Otis, e Bill Zeller, um policial em Salem. John Shelton era um estudante de geologia da Brigham Young que era fluente em espanhol por conta de uma missão de dois anos da igreja. E John Cooper, um engenheiro da Nasa de Houston.

Em novembro, Dafoe anunciou o último membro da equipe americana de oito pessoas: uma mulher de Denver chamada Janet Johnson.

Johnson se juntou ao Colorado Mountain Club. Aos 30 anos, ela se tornou a 82ª pessoa conhecida —e uma das primeiras 20 mulheres— a alcançar o cume de cada um dos “fourteeners” do Colorado, as mais de 50 montanhas com mais de 14 mil pés de altitude.

Janet não trabalhou em 1972, nem em 1973. Depois de uma viagem de escalada na Europa, juntou-se à expedição do Mazamas ao Aconcágua.

Johnson empacotou seus pertences em uma mochila com armação de alumínio. Ela usou uma caneta para escrever seu nome ou as iniciais na maioria deles. E ela trouxe a Nikomat, a versão para o mercado consumidor das câmeras profissionais da Nikon da época. Johnson usou uma máquina de etiquetas para gravar seu nome e endereço em uma fita de relevo azul e colou na parte inferior da capa de couro da câmera, caso a perdesse.

A Escalada

Rafael Moran, repórter do Los Andes, um jornal diário, entrevistou os alpinistas perto da piscina de um hotel da argentina Mendoza. Ele não cobria todas as expedições ao Aconcágua, mas esta era intrigante: americanos, o Glaciar Polonês, uma mulher, um cientista da Nasa.

Moran teve uma suspeita sombria sobre o grupo. Os americanos pareciam desconectados uns dos outros e despreparados para a séria tarefa de escalar o Aconcágua. Moran sussurrou para o fotógrafo: “Tire uma foto de cada um deles hoje. Eu não acho que todos voltarão.”

A prévia do jornal do dia seguinte indicava a ascensão planejada. Ela mostrava os americanos reunidos em torno de uma foto do Aconcágua. A legenda mencionava o engenheiro da Nasa no centro.

Apenas um mês antes, em dezembro de 1972, Cooper estava no controle da missão em Houston para a 17ª e última missão Apollo; ele era um engenheiro de operações de superfície. Em 1966, Cooper ingressou na Nasa assim que o programa Apollo começou. Cooper estava no grupo de operações de superfície que guiou Neil Armstrong e Buzz Aldrin enquanto eles se tornavam os primeiros humanos a caminhar na lua.

Em 12 de janeiro de 1973, o voo de Cooper de Houston pousou em Miami, onde ele encontrou Johnson. Eles voaram juntos para a Argentina.

Na montanha, os americanos lutaram desde o início. Em 20 de janeiro de 1973, o grupo percorreu 25 milhas até a Casa de Piedra, uma casa de pedra na confluência dos rios Vacas e Relinchos. No dia seguinte, o grupo chegou ao acampamento base, a cerca de 13.500 pés de altitude.

Alfonso havia contratado Roberto Bustos, um alpinista e estudante de 25 anos, para gerenciar o acampamento base. Hoje professor de geografia aposentado em Buenos Aires, ele lembra sua primeira impressão do grupo: muitos equipamentos de alta qualidade, mas uma dinâmica perturbadora. “Não havia atitude de grupo. Eu pensava: ‘Estou por minha conta’. Cada um tem que cuidar de si mesmo. Eles não estavam prontos para uma montanha tão estranha e grande como o Aconcágua”.

Dafoe estava no comando. Petroske era o vice-líder, seguido por Eubank, o médico, e Shelton, o intérprete de Alfonso. Em seguida vieram Zeller, McMillen, Cooper e Johnson, sem funções definidas.

Naquela época, assim como hoje, chegar ao cume geralmente exigia uma semana ou mais de idas e vindas pela montanha, movendo equipamentos e se adaptando à altitude. O grupo carregava cargas para o Acampamento 1 a 15,5 mil pés e retornava ao acampamento base no final do dia. A caminhada até o Acampamento 2, a quase 18 mil pés, levou 7 horas.

A expedição estava se fragmentando devido aos efeitos da altitude. Três americanos, incluindo Dafoe, o líder, ficaram no Acampamento 1. Outros cinco, incluindo Johnson e Cooper, foram ao Acampamento 2 com Alfonso. Eles subiram lentamente para estabelecer o Acampamento 3 na base do Glaciar Polonês, a cerca de 1914 mil pés. Uma tempestade passou, prendendo o grupo no local para um bem-vindo dia de descanso. Depois dela, havia céu claro, uma janela perfeita para uma escalada até o cume.

O grupo “esperava que levasse pelo menos o dia todo”, escreveu Zeller mais tarde em seu relato dos eventos, “mas a parte inferior do glaciar parecia não apresentar problemas, pois parecia estar em boas condições, sem fendas, não muito íngreme e boa neve para crampons”.

GALERIA

Mas depois de um café da manhã tardio, Petroske de repente perdeu a coordenação e lutou para colocar seus crampons. Alfonso acompanhou Petroske de volta ao acampamento base. Agora, a equipe americana estava dividida ao meio. Restaram Cooper, Johnson, Zeller e McMillen. Nenhum deles havia chegado tão alto em qualquer lugar.

A subida pelo glaciar foi lenta. Ao anoitecer, os quatro desistiram de alcançar o cume naquele dia. Eles estavam a aproximadamente 21mil pés. Eles cavaram uma pequena caverna de neve no glaciar com seus machados de gelo. Não tinham sacos de dormir, então se deitaram em cobertores de espaço de sobrevivência.

O vento soprava um pó fino do cume, enchendo a abertura da caverna com neve e cobrindo as pernas de Cooper. Johnson o descobriu cerca de uma hora antes do amanhecer. Mas Cooper estava acabado. Frio e cansado, “ele anunciou que estava voltando”, disseram Zeller e McMillen mais tarde. Cooper nunca chegou lá. Ele morreu no glaciar.

Pouco depois, Johnson também morreu. Exatamente o que aconteceu é especulação, espalhada pelo mundo por 50 anos.

Dois homens de Oregon —Zeller, um policial, e McMillen, um fazendeiro de laticínios— foram os últimos a ver Cooper e Johnson vivos. Eles deram versões detalhadas dos eventos. Pequenas contradições e o efeito confuso das alucinações em altitudes elevadas levantaram questões para as autoridades argentinas e instigaram a imaginação do público.

Na base do Aconcágua, Alfonso e os sobreviventes americanos foram detidos para interrogatório. Em Mendoza, um juiz foi designado para o caso, assim como um investigador da polícia. As autoridades rotularam o caso como investigação de homicídio culposo.

Na Argentina, o juiz Victorio Miguel Calandria Agüero queria saber como Cooper e Johnson morreram. Não poderia haver respostas certas sem os corpos. No final de 1973, no auge de uma nova temporada de escalada de verão nos Andes, uma equipe de quatro homens foi montada para os procurar. Alfonso lideraria a equipe.

Um repórter e fotógrafo da National Geographic chamado Loren McIntyre soube disso e apareceu para se juntar à equipe.

Uma semana depois, no pé do Glaciar Polonês, eles encontraram a evidência fantasmagórica da expedição americana —tendas rasgadas, um saco de dormir azul rasgado vazando penas. Cerca de 150 jardas acima do acampamento, encontraram o corpo congelado de Cooper.

Uma tempestade se aproximou. Os homens deixaram Cooper lá, cravando estacas ao redor dele para mantê-lo no lugar e desceram para a segurança do acampamento. No dia seguinte, McIntyre foi o primeiro a chegar ao corpo e fez uma inspeção mais próxima. Ele tirou fotografias detalhadas de Cooper.

Não havia sinal de Johnson.

Detalhes sobre Cooper se espalharam rapidamente. Ele estava sem um crampon. Não havia machado de gelo. Ele estava em uma encosta suave. Seu rosto machucado tinha uma expressão de terror congelado. E seu abdômen tinha um buraco cilíndrico, sangrento e profundo.

Os resultados da autópsia completa foram selados pelo juiz. Mas ele divulgou a página de capa, que mencionava a causa da morte: contusões cranianas. Ferimentos no crânio e no cérebro. O juiz fez apenas uma declaração: precisamos do corpo de Janet Johnson.

Encontrando Janet Johnson

Alberto Colombero tinha 17 anos quando ele e outros dois encontraram o corpo de Johnson. Era 9 de fevereiro de 1975. Colombero estava escalando o Aconcágua com seu pai, Ernesto, e Guillermo Vieiro, experientes escaladores do Aconcágua. Uma tempestade os obrigou a abortar uma tentativa de chegar ao cume. Os três decidiram descer pelo Glaciar Polonês.

Colombero viu algo avermelhado à sua esquerda. Os homens pensaram que era uma lona. Eles encontraram Johnson deitada de costas. Seu rosto, enegrecido por dois anos de exposição, estava machucado em três lugares. Osso branco aparecia em seu nariz, testa e queixo, onde a pele pendia como uma aba. Havia manchas de sangue em seu rosto e jaqueta.

Cordas estavam enroladas ao redor dela. Suas mãos estavam nuas, sua jaqueta leve estava aberta. Eles não conseguiram encontrar seu piolet.

A inclinação era suave. Zeller não disse que ele e Johnson caíram juntos por um longo tempo? Eles pensaram que não havia como ser esse o local da queda. A memória de Colombero guarda um outro detalhe: uma pedra em cima de Johnson. Seu corpo estava em um campo de gelo.

Colombero disse que na época era jovem e inexperiente demais para tirar conclusões. Mas os homens mais velhos, pelo resto de suas vidas, “tinham certeza de que Johnson foi assassinada”, disse Colombero.

A Câmera

A Film Rescue International, na cidade canadense de Indian Head, é administrada por um homem chamado Greg Miller. Sua pequena equipe de técnicos recebe e processa filmes antigos ou danificados.

Agora Miller estava segurando uma câmera que havia sido trancada em uma geleira a cerca de 20 mil pés por quase cinco décadas. A câmera estava intacta. Os mecanismos funcionavam.

Miller levou a câmera para uma sala escura, ligou a luz infravermelha que não exporia o filme e abriu a parte de trás da câmera. “Acho que vamos ver algo.”

A responsabilidade pelo processamento ficou a cargo de Erik LaBossiere. Sob luz infravermelha, LaBossiere moveu os rolos de filme para tambores à prova de luz. Os tambores foram colocados em uma máquina que lavou o filme em um ciclo de soluções. Quando LaBossiere saiu da sala escura, ele parecia satisfeito.

Depois de mais máquinas e soluções, LaBossiere desenrolou o filme e segurou uma tira contra a luz. O rolo encontrado dentro da câmera continha 24 fotografias.

Por volta do meio-dia, com o sol alto e as sombras curtas, Johnson tirou uma foto de um dos outros escaladores, que estava mais abaixo e sentado na geleira. As sombras da tarde ficaram mais longas a cada fotografia. Em breve, os quatro escaladores cavariam uma caverna para dormir. Cooper desceria pela montanha na manhã seguinte, enquanto os outros três continuariam subindo.

Johnson tirou mais fotos depois que Cooper partiu. Antes de escurecer, tirou três fotografias dos Andes ao redor. Se ela estava privada de oxigênio ou delirante, ainda sabia como focar a lente, compor o quadro e segurar a câmera firme para tirar fotos claras. É aí que o filme acaba. É aí que a lenda começa.

O filme não resolve o mistério. Ele o aumenta. Ele mostra o que Johnson viu em suas últimas horas, mas não como ela se sentiu. Não como ela morreu. Nem toda descoberta leva à revelação. Algumas apenas fazem você querer saber mais.

Fonte: Folha de São Paulo

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