No ano de 1996, em uma frase que me marcou, Richard John Neuhaus descreveu o Holocausto como “nosso único ícone culturalmente disponível do mal absoluto”. Esta frase apareceu em uma crítica ao controverso livro de Daniel Jonah Goldhagen, chamado “Hitler’s Willing Executioners” (os carrascos voluntários de Hitler, em tradução livre).
Na paisagem pós-Guerra Fria, com o poder americano aparentemente ocupando o palco da história sozinho, a memória do genocídio da Alemanha nazista passou a desempenhar um papel cultural especial na autocompreensão do Ocidente liberal. Podemos não concordar sobre o bem supremo, mas conhecíamos o mal supremo, e argumentos sobre sua memória, significado e implicações eram absolutamente centrais para a política e a cultura.
Pelo menos, é assim que me lembro do lugar do Holocausto no mundo dos anos 1990. Vi “A Lista de Schindler” no cinema quando tinha 14 anos. Li Elie Wiesel, Anne Frank e Primo Levi. Fiz uma visita ao Museu Memorial do Holocausto em Washington quando estava no ensino médio. Desde a Primeira Guerra do Golfo até Ruanda e Bósnia, os argumentos sobre a política global sempre pareciam ser conduzidos com o Holocausto pairando ao fundo.
A controvérsia em torno de livros como o de Goldhagen, ou todas as diferentes teorias delineadas em “Para Entender Hitler”, de Ron Rosenbaum, fizeram parte da minha introdução ao debate intelectual. Quando minha família se tornou católica no final dos anos 1990, parecia totalmente natural que, mesmo quando as pessoas tinham discussões sobre a Igreja Católica, elas discutiam sobre o Holocausto. Teria o papado feito o suficiente para salvar os judeus, até que ponto o antissemitismo estava enraizado na fé, e assim por diante.
Aquele mundo sempre foi limitado no tempo. Parte da atenção especial refletiu a mesma dinâmica do fascínio pela Geração Grandiosa na mesma época, já que na década de 1990 havia muito mais sobreviventes do Holocausto entre nós do há hoje. E ao longo de qualquer linha do tempo, a diminuição da influência europeia, o surgimento da Ásia e a simples passagem do tempo inevitavelmente teriam tornado o Holocausto um pouco menos central para os debates do século 21, menos elevado entre as atrocidades históricas.
A pergunta é até que ponto essa diminuição está ocorrendo? E qual efeito a óbvia resiliência do antissemitismo e da violência antijudaica pode ter em nossa memória coletiva? Eventos como o massacre de civis israelenses pelo Hamas em 7 de outubro reforçam o status do Holocausto como o exemplo do mal absoluto? A reação do mundo, talvez especialmente a reação da esquerda ocidental, revela o quanto a memória da década de 1940 desvaneceu?
Com os ataques do Hamas, a história parecia mais simples: foram atrocidades contra judeus realizadas com zelo aparentemente genocida; foi um caso em que a formulação de Neuhaus parecia imediatamente relevante; foi uma oportunidade para enfatizar a necessidade de lembrança histórica.
Mas, junto com essa reação imediata, houve uma diferente. Uma resposta indiferente ou até hostil a qualquer invocação da memória em defesa de Israel e com isso uma revelação para muitos judeus liberais sobre o quanto a esquerda mudou desde os anos 1990. A questão não é apenas os ativistas de extrema esquerda que pareciam simpatizar abertamente com o Hamas. É uma desinclinação progressista mais ampla em atribuir ao antissemitismo um lugar particularmente importante entre os males do mundo – pelo menos não em relação ao “colonialismo de colonos”, nem outras construções que colocariam Israel, não o Hamas, no banco dos réus.
Uma coisa que eu não esperava em meio a essas mudanças era que os argumentos em defesa de Israel se afastariam do excepcionalismo do Shoá [holocausto, em hebraico] ao argumentar que o Hamas é pior do que os nazistas. Mas talvez faça sentido, como resposta à diminuição da memória do Holocausto, que haja elevações da aposta retórica junto com invocações do passado.
O escritor conservador Douglas Murray apresentou uma versão desse caso em uma entrevista há algumas semanas, e o historiador Andrew Roberts expôs o argumento em detalhes em um ensaio para o Washington Free Beacon. Eis um trecho:
Enquanto os nazistas faziam de tudo para esconder seus crimes do mundo, porque sabiam que eram crimes, o Hamas fez exatamente o oposto, porque não os considera assim.
Em outubro de 1943, Heinrich Himmler, chefe da SS, fez um discurso notório para cinquenta de seus principais tenentes em Posen. “Quero falar francamente com vocês sobre um assunto extremamente grave”, disse ele. “Podemos falar sobre isso entre nós, mas nunca falaremos disso em público. Estou me referindo à retirada forçada dos judeus, ao extermínio do povo judeu. É uma página de glória em nossa história que nunca foi escrita e nunca será escrita”. Por total contraste, os assassinos do Hamas, 80 anos depois, prenderam câmeras GoPro em seus capacetes para transmitir ao vivo suas atrocidades nas redes sociais. Embora os nazistas tenham queimado judeus vivos em celeiros durante sua retirada em 1945, eles não filmaram a si mesmos fazendo isso. Existem muitas fotografias de nazistas ao redor de valas cheias de corpos judeus, mas essas foram tiradas para deleite privado e não para consumo público.
Em contrapartida, a alegria com que o Hamas matou pais na frente de seus filhos e filhos na frente de seus pais foi transmitida ao mundo. O sadismo nazista era rotineiro e generalizado, mas não estava incorporado em seus planos operacionais de maneira como o sadismo do Hamas tem sido”.
Esse argumento não só não me convenceu como também me fez lembrar da força da defesa do excepcionalismo do Holocausto e do motivo pelo qual o genocídio nazista provavelmente manterá alguma distinção crucial nos registros do mal, mesmo quando o mundo mudar e o século 20 desaparecer.
Roberts enfatiza a selvageria pública do Hamas em contraste com as tentativas nazistas de esconder seus crimes do mundo civilizado. No entanto, essas expressões de barbárie, assim como os terríveis crimes do Estado Islâmico com os quais foram comparados, são notáveis justamente por serem retrocessos a uma forma de guerra terrível, mas também historicamente familiar, na qual a brutalidade, a humilhação e o estupro fazem parte do arsenal de combate, e as paixões furiosas são deliberadamente adotadas.
Mais adiante em seu artigo, Roberts enfatiza a impaciência dos membros do Hamas, desencadeando sua campanha de terror quando eles nem mesmo controlavam realmente o território que haviam invadido, em contraste com os nazistas que esperaram até terem “domínio territorial completo” antes de desencadear seu plano genocida completo. Isso, Roberts escreve, mostra que o “desejo de torturar e assassinar judeus” do Hamas era ainda mais poderoso do que o dos nazistas.
Porém, mais uma vez, é exatamente a paciência e o poder irrestrito dos nazistas que tornam seus crimes distintos. Aqui, a visão oferecida em um filme como “Conspiração” (2001), sobre a Conferência de Wannsee, é tão essencial quanto qualquer representação dos campos de extermínio para entender a centralidade do Holocausto na história do mal.
Matar, estuprar e torturar, como fez o Hamas, quando lhe foi dada uma breve oportunidade de atacar um adversário odiado e militarmente mais poderoso é terrivelmente maligno –mas de uma forma que é intensamente reconhecível em todos os ciclos de violência e vingança da história humana. Por outro lado, planejar crimes horríveis com cuidado requintado e deliberação tecnocrática quando já se conquistou, quando se está completamente no controle, quando a população que se pretende atingir está inteiramente sob seu poder –isso me parece mais horrivelmente único.
Roberts, em outras palavras, está equivocado: o mal paciente e cuidadoso é pior do que o mal impaciente e imprudente –mais aterrorizante e mais culpável ao mesmo tempo. A sede de sangue é sempre perversa, mas construir um aparato para matar com indiferença fria é, em última análise, o crime mais satânico. Não é à toa que Dante coloca os fogos do seu Inferno nos círculos exteriores, enquanto enche as profundezas do inferno com gelo.