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Morte de Kissinger foi controversa como seus 100 anos – 01/12/2023 – Igor Patrick

A morte de Henry Kissinger foi tão midiática e controversa como foram seus 100 anos de vida. Um negociador duro, pragmático (e muitas vezes cruel), Kissinger deixou para trás uma horda de burocratas que o admiram e tantos outros que preferiam vê-lo terminar seus dias atrás das grades em Haia.

E era esperado que fosse assim. Ao longo das décadas que serviu ao governo dos Estados Unidos, seja com cargo oficial ou como conselheiro dos partidos Democrata e Republicano, ele se notabilizou por perseguir os interesses americanos a qualquer custo. Para isso, frequentemente contava com a ajuda de Washington, que filtrava seu legado sob as lentes dos interesses nacionais.

É curioso, portanto, que a lembrança de um prospecto tão complexo pelos que comentaram sua morte tenha sido tão diferente na China. Enquanto Xi Jinping, por exemplo, enviou condolências a Joe Biden e à família de Kissinger pelo falecimento, as redes sociais do país asiático concordavam em uníssono, lamentando a perda do “último grande amigo da China” nas palavras de um dos posts mais curtidos do Weibo.

Pequim é grata a Kissinger. O mesmo pragmatismo que em outros cantos do mundo obliterou países, destituiu governantes democráticos e chancelou a morte de milhões, para a China serviu como primeiro passo rumo à aproximação com os EUA. A normalização dos laços foi o que fez o regime comunista ser readmitido na comunidade internacional e pavimentou a impressionante ascensão econômica, política e diplomática da China.

Não gastarei tinta da Folha para detalhar todo o processo —aos interessados, o próprio Kissinger relata como tudo se deu em “Sobre a China”, publicado no Brasil pela editora Objetiva e essencial a qualquer sinólogo e diplomata. Interesso-me mais em ressaltar as motivações.

Enquanto esteve no governo, braço direito de Richard Nixon, o diplomata iniciou o diálogo com a China maoísta tendo em vista um inimigo em comum, a União Soviética. Seu trabalho foi guiado pela necessidade de isolar Moscou e, para isso, Pequim, que à época também se via às voltas com a agressividade soviética, estava feliz em colaborar.

Mas a renúncia de Nixon e a chegada de Gerald Ford ao poder o fizeram perder influência. Kissinger então rapidamente recalculou a rota e eventualmente percebeu que seu conhecimento valioso sobre a idiossincrasias do poder em Zhongnanhai, a residência oficial dos líderes chineses, valiam ouro —literalmente. Foi quando fundou a Kissinger Associates, empresa de consultoria dedicada a dar pitacos para empresários e políticos ansiosos pelas oportunidades econômicas que uma China aberta poderia trazer.

Ao longo de décadas, foi por meio dela que o agora falecido centenário ampliou influência e fez fortuna. Um exemplo de como seus conselhos eram guiados por interesses pessoais? Avalie uma entrevista que concedeu à rede de TV ABC após os chocantes relatos do massacre na Praça da Paz Celestial. Para a surpresa de muitos, ao ser questionado por Peter Jennings sobre “o que a América deveria fazer”, o ex-diplomata foi categórico: “não aplicar sanções”.

Estaria Kissinger descrente da capacidade de sanções unilaterais em resolver contendas diplomáticas? Talvez. Mas ele nunca chegou a mencionar que, à época, tinha recém-criado o China Ventures, um fundo de investimentos em parceria com a Corporação de Investimento Fiduciário Internacional da China, uma estatal. Questionado sobre o conflito de interesses, não voltou atrás no que disse —lamentou ter dado a entrevista.

Suas visitas performáticas a Pequim nos anos que se seguiram ajudaram a construir a marca pessoal de interlocutor com a liderança comunista. E o Partido sempre esteve disposto a retribuir com gratidão o trabalho do “velho amigo”, a quem confiou o estabelecimento de canais informais de comunicação e a quem recebia com honras de chefe de Estado.

Nos últimos anos, conta-se, conforme o relacionamento entre as potências se deteriorava, Kissinger se incomodava de ter perdido influência aos ouvidos de legisladores em Washington que o viam como um “fantoche dos comunistas”.

Se movido pelo que deixou de ganhar, como quase sempre foi o caso, ou por motivações altruístas, seu fracasso em reverter o curso das relações talvez mostra que mesmo para um “ás da diplomacia”, há um limite do quanto ainda é possível fazer em uma conjuntura internacional tão tóxica.


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Fonte: Folha de São Paulo

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