Sempre dou uma passadinha na portaria daquele edifício de esquina em um bairro residencial de Barcelona.
Vivi ali alguns anos e me encariñé da família de zeladores.
Detrás de uma sóbria mesa de madeira no saguão de entrada, avisto a cabecinha delicada de Conchi, a matriarca, com seus esparsos, mas impecáveis tufos encaracolados, sempre tingidos de caramelo-diáfano (ou cor-de-anjo, como eu lhe digo).
Ao seu lado, como sempre, a filha, Mari. Que às vezes serve de tradutora da mãe pra mim, porque eu sou meio surda e a Conchi é andaluza paka e come metade das palavras.
Os óculos-lupa “de ver” da matriarca ampliam as iridescências metálicas da sombra de olhos azul, sua cor preferida (penso em borboletas sempre que vejo a Conchi).
Como eu trabalho com maquiagem e coisinhas de beleza, tô sempre trazendo alguma coisa pra ela, e hoje venho com um kit belezura em tons vinho cheio de glitter y fiesta.
Que a Conchi tem quase 90, mas é puro glamour 24/7.
— Sobe que o Pepe quer te mostrar uma surpresa — me diz, a mão na minha.
Mãos, essas mensageiras mágicas.
Subo ao quinto andar e já me espera na porta Pepe, o marido. Cinco anos mais jovem que a Conchi, desde siempre juntos. Conheceram-se ainda na infância em Granada — ou Granáa, como dizem os nativos.
— Aye, Susi, quase me dá um troço outro dia, quando tivemos que internar a Conchi por um mal súbito — diz. Rezei tanto, me tremia todo, nunca estive sem ela, só de pensar me dá um yuyu (medo), que mal lo pasamos…
Pepe é um doce de boniato (a batata-doce daqui). Quase 1,90 metro de pura sensibilidade. Aposentado, cuida do turno da manhã na portaria do prédio. Trabalhou a vida inteira em uma empresa que fazia corrimãos pra escadarias ou, a partir da década de 80, pra escadas rolantes. Pepe é da época em que ainda se podia fazer todaavidaumacoisasó.
De repente, seu semblante se ilumina. “Espera que eu vou acender pra você ver!”, exclama, enigmático, e se mete por uma portinha.
O apartamento de três quartos é relativamente espaçoso, mas não parece, tal é a profusão de cousas por todas as partes.
Por todas as partes e de todos os tipos — num canto, os livros e (muitíssimos, até o teto) bibelôs de Conchi; em outro armário, as bolsas e sapatos de Mari, além de apetrechos para scrapbooking; e, por toda parte, decoração natalina precoce (em geral, povo aqui começa a montar nos feriados de princípio de dezembro), com direito a papai noel descendo de uma cristaleira e duende estorvando o caminho no corredor. E, no quartinho —
— Pepe, isso é música natalina??
Entro e fico boba: nesse cantinho sem janelas, apenas uma mesa e, sobre ela, uma cidade inteira. Iluminada e viva.
Em cada casinha, portinha ou praça em miniatura, bonequinhos animados passeiam com cachorros, se jogam na neve, vendem pão. Chaminés soltam fumacinha. A fábrica de cerveja tem um bar anexo onde habitués fazem um eterno brinde. Um casal compartilha um beijo eterno diante do lago congelado, onde, por sua vez, famílias patinam, enquanto o cachorrinho late na margem, vigiando a cena forevis and evis and evis.
Devo ter passado meia hora embasbacada só examinando os detalhes. E pensando que eu também queria virar miniatura e viver nesse povoado em loop eterno de harmonia nevada.
Pepe, ao meu lado, vai amorosamente ajustando as arvorezinhas cobertas de neve, as montanhas detrás das casas, e me contando que cada ano ele e Mari compram mais alguma coisa pro pueblo.
— Quanto custa uma casinha dessas? — aponto pra uma maquete mediana, uma casinha de aluguel de esqui, iluminada por dentro. Na recepção, minifregueses conversam com um minifuncionário. No balcão, uma minixícara de café fumegante. Ao fundo, uma lareira crepitando miniluzes vermelho-amarelas.
— É muito dinheiro, filha, mas também uma alegria pra nós… olha essa padaria, que bonita! E os detalhes! Uma maquete dessas pode custar de 300 a 500 euros. E tem gente que compra, hein! Quando eu fui outro dia o dono da loja estava preparando uma encomenda de 3 mil euros para um cliente chinês.
Penso em responder algo; não digo nada. A cara grisalha do Pepe reluz com os raios dourados de seu pueblo mágico de Natal. Quem sou eu pra romper o encanto.
Aliás, confesso, mesmo não sendo religiosa (eles são, e, além do pueblo mágico, ainda vão meter um presépio do Guinness em algum lugar do apartamento), e mesmo não tendo 300 conto pra gastar numa casinha dessas (embora tenha contemplado a ideia, num momento de profunda hipnose natalina), também fui abduzida pela magia dourada daquele quartinho.
De fato, Pepe e Mari estão longe de ser os únicos fanáticos da matéria. A feira de Natal mais famosa de Barcelona, a Fira de Santa Llúcia, montada todos os anos desde 1786, é um paraíso para os maquetistas e fãs de miniaturas. Além de apetrechos pra se montar um presépio, também há itens para criar seu próprio pueblo-nevado-natalino.
Em tempo: Conchi está muito melhor, obrigada. Melhorou de saúde e, depois de um par de anos preocupantes, em que mal comia um pãozinho com algo de café, sem apetite e com vontade de sumir do mundo, voltou a se alimentar muy bem e a ganhar peso e vitalidade. “Ritalina”, sussurra Mari. “É forte, mas quem dera tivessem dado isso antes pra ela”.
Eu me despeço com promessas de vir almoçar em algum domingo (acolhimento que é alegria pura pra uma estrangeira longe da família) e abraços delicados na Conchi. Já pensando em voltar logo, porque quero ver o presépio…