O voto de brasileiros com dupla cidadania passou a ser disputado com afinco por políticos de Luxemburgo, país na Europa com o maior PIB per capita do mundo, que se prepara para eleições legislativas em outubro.
O movimento é resultado do aumento expressivo no número de brasileiros com dupla cidadania nos últimos anos. Em junho, 26.743 cidadãos luxemburgueses moravam no Brasil, cifra que equivale a quase doze vezes o total de 2.307 registrados em 2018, segundo dados do governo.
O balanço mais atual representa 4,2% do total da população de Luxemburgo, grão-ducado espremido entre Bélgica, Alemanha e França com pouco mais de 660 mil pessoas, o equivalente à cidade de Cuiabá.
A explosão da concessão de cidadanias é consequência de uma lei que vigorou de 2008 a 2018 e facilitou o processo de reconhecimento. Durante a janela, o governo avaliou pedidos feitos por pessoas que conseguissem provar ter um antepassado luxemburguês que estava vivo em 1900, inclusive de linhagem materna. Hoje, só o ancestral masculino é reconhecido.
A procura foi tanta que chegou a sobrecarregar os departamentos luxemburgueses responsáveis pela análise da papelada —os brasileiros puderam abrir o processo sem viajar à Europa. As pessoas que tiveram os seus pedidos aceitos têm até 2025 para irem a Luxemburgo e completar o processo.
O aumento do número de brasileiros com o passaporte luxemburguês entrou no radar dos políticos locais, e o tema passou a ser discutido na corrida eleitoral. Roberta Züge, 50, tem dupla cidadania e, segundo a imprensa local, é a primeira brasileira a disputar uma vaga no Parlamento do grão-ducado. Ela mora no país europeu há apenas três anos e foi convidada para ser candidata pelo Partido Pirata, legenda modesta fundada em 2009 que hoje tem dois dos 60 assentos no Parlamento.
Nascida em Santo André (SP), Züge é veterinária e não teve experiência política no Brasil, mas chamou a atenção da liderança do partido depois de reivindicar publicamente a validação de seu diploma para que pudesse exercer a profissão em Luxemburgo. Ela conta que fez o processo de equivalência do documento em Portugal e, durante oito meses, seus pedidos de autorização de trabalho foram ignorados.
“O ministério não me respondia. Eles não queriam dar autorização de trabalho por ser um diploma de fora da Comunidade Europeia”, diz. “Enfrentei preconceito muito grande, fui à luta e ganhei certa visibilidade.”
Züge só conseguiu a autorização para trabalhar depois que seu caso foi publicado pela imprensa local. Após o processo que descreve como uma batalha, ela diz que virou referência para outras pessoas recém-chegadas. “Então, eles [Piratas] me convidaram para chamar a atenção para toda a problemática dos que têm cidadania e que, quando chegam, não são integrados”, diz ela, também sócia-fundadora da Associação de Luxemburgueses no Brasil.
As propostas de Züge são centradas na integração. Se eleita, ela promete trabalhar pela reforma do sistema de reconhecimento de diplomas em Luxemburgo. Também pretende ampliar programas de acolhimento e de adaptação, além de intercâmbios com a comunidade luxemburguesa no Brasil, seu público-alvo. Um de seus panfletos de campanha apresenta os projetos em português e explica como os cidadãos podem votar do exterior.
Além disso, se conquistar a vaga no Parlamento, Züge precisará de um tradutor para defender suas propostas na tribuna. Os parlamentares não são obrigados por lei a falar os idiomas oficiais do país, mas os debates acontecem principalmente em luxemburguês, que a candidata não domina. Antes do início oficial da campanha, em 2 de setembro, ela mergulha em um curso intensivo da língua: faz cinco aulas por semana de quatro horas cada uma. O luxemburguês é um dos idiomas oficiais do grão-ducado, além do francês e do alemão.
Quase metade da população de Luxemburgo é formada por estrangeiros, principalmente da Europa —a comunidade portuguesa lidera a lista, seguida pelos franceses. De olho nos eleitores que não moram no país, o Partido Democrata, do premiê de Luxemburgo, Xavier Bettel, vem divulgando vídeos nos quais o político se comunica em português sobre o voto por correspondência —ele também gravou versões em inglês, holandês e francês.
Sven Clement, líder dos Piratas, destaca que esta será a primeira eleição com mais de 10% dos eleitores vivendo no exterior. A decisão de convidar a brasileira Züge ao partido, diz, deve-se ao contínuo trabalho dela com os luxemburgueses do Brasil. “Sabendo que o atual governo tem maioria de apenas um assento, [os eleitores que moram no exterior] podem ter um impacto tremendo”, avalia Clement. O nome do partido, afirma, é uma alusão à ideia de “roubar” ou emprestar boas ideias e nasceu inspirado no site Piratebay.
Dos 60 candidatos dos Piratas, seis (10%) são luxemburgueses nascidos em países lusófonos —além de Züge, a legenda é representada por quatro candidatos de Portugal e um de Cabo Verde.
Em junho, o Brasil era o terceiro país com mais cidadãos luxemburgueses fora do território, atrás somente da França e da Bélgica. Na tentativa de atrair votos, alguns candidatos têm cruzado o oceano para conversar e apresentar propostas.
Jan Eichbaum, cônsul honorário de Luxemburgo em São Paulo desde 1997, diz que recebeu oito políticos, de esquerda e de direita, que vieram ao Brasil para encontros com possíveis eleitores em eventos organizados por associações de cidadãos luxemburgueses com o apoio do consulado. Alguns dos eventos chegaram a reunir até 700 pessoas. “Em breve, vamos organizar um almoço para os luxemburgueses conversarem com deputados sobre geopolítica na Europa.”
Politicamente a tentativa de conquistar os votos com o deslocamento e o tête-à-tête com os eleitores parece ser exagerada, mas se justifica. Levantamento realizado pela empresa americana LuxCitizenship, com 581 brasileiros que vivem fora de Luxemburgo, aponta que apenas 24% pretendem votar em outubro; 46% ainda estão indecisos.
Essa expressividade no número de votos de pessoas no exterior tem causado polêmica. Alguns partidos com bandeiras anti-imigração ameaçam até judicializar o processo e exigir que o direito de votar seja condicionado à apresentação do passaporte. Segundo a LuxCitizenship, só 11% dos luxemburgueses que moram no Brasil têm o documento.
Entretanto, Sven Clement encoraja que registrem o voto mesmo aqueles que só têm o documento declaratório da dupla cidadania. “Se alguém não receber o boletim de voto por não ter o passaporte, poderá contatar os Piratas e nós avançaremos na Justiça para exigir o direito de voto”, disse o líder dos Piratas.
Oficialmente, o governo diz que a facilitação da concessão de cidadania foi uma questão de justiça com as famílias dos expatriados. A maior parte deles era de descendentes de pessoas que fugiram durante a Primeira ou a Segunda Guerra Mundial, muitos para trabalharem em empresas de capital luxemburguês pelo mundo. Especialistas, porém, dizem que o verdadeiro objetivo é atrair novos moradores, numa tentativa de manter a população em idade produtiva.
O pleito está marcado para 8 de outubro, e o voto não é obrigatório para eleitores que moram fora de Luxemburgo. Os cidadãos que quiserem votar devem fazer o pedido até a próxima terça (29) pelo portal myguichet.lu.
A candidata Roberta Züge, diz que levou um susto com a proposta para entrar na política luxemburguesa no primeiro momento. Mas ela aceitou o projeto depois de ouvir que o convite não era apenas para ela, mas para toda a comunidade brasileira. “Queremos que eles passem, de fato, a exercer a cidadania”, diz.